É mais que oportuno o lançamento nesta semana de Em nome dos pais, livro do jornalista Matheus Leitão.A ditadura militar virou uma espécie de fetiche em tempos recentes, em especial para quem não viveu aquele tempo. “Não foi tão ruim quanto dizem.” “Havia ordem e não havia corrupção.” “A economia nunca cresceu tanto.” Nas frases que se espalham pelas redes sociais, o passado autoritário aparece como uma solução fácil e sedutora para os problemas do presente democrático. Nenhum partido de esquerda defende a volta da luta armada, mas, em todas as manifestações pelo impeachment, sempre havia uma minoria bradando pela intervenção militar. O deputado Jair Bolsonaro – que não apoia o retorno à ditadura, mas atrai seus partidários – alcançou na semana passada 15% nas pesquisas para as eleições de 2018. Na maré revisionista, ninguém lembra a censura, a repressão às passeatas, as prisões arbitrárias e as centenas de crimes contra os direitos humanos fartamente documentados – em especial, sessões hediondas de tortura e execuções sumárias. Na mente retorcida de quem faz apologia da ditadura, tudo se passa como se os crimes dos terroristas de esquerda – e os houve em abundância – justificassem os cometidos pelo Estado, nos porões onde a única lei em vigor era o sadismo doentio dos torturadores. O Brasil foi incapaz, até hoje, de fazer um acerto de contas decente com o próprio passado.
É mais que oportuno, por tudo isso, o lançamento nesta semana de Em nome dos pais, livro do jornalista Matheus Leitão a ser secundado por um documentário, previsto para agosto. Matheus narra a busca que tomou, em diferentes graus de intensidade, um terço de seus 39 anos de vida: a investigação da história dos próprios pais, presos e torturados durante a ditadura. Ambos foram detidos quando a mãe dele, a jornalista Míriam Leitão, estava grávida de seu irmão mais velho. Isso não impediu que ela fosse submetida a torturas bárbaras – como ficar horas num ambiente escuro, acompanhada apenas de insetos e de uma jiboia, ou passar uma noite inteira sob a ameaça de ser estuprada. O pai, o ex-jornalista Marcelo Netto, foi espancado, viveu a tensão da roleta-russa e passou nove meses numa solitária. Na organização de esquerda em que militavam, nenhum dos dois pusera a mão em armas.A maior qualidade do livro de Matheus é a atitude que, na falta de palavra melhor, só pode ser descrita como jornalismo. Ele não está em busca de vingança, nem preso a visões ideológicas ou certezas morais – com exceção da fé cristã, reiterada em várias passagens. Quer apenas conhecer a verdade, ouvir o que têm a dizer os que participaram da história e, se possível, entendê-los. Para isso, vai atrás do delator que entregou os pais, dos torturadores e do comandante militar que supervisionou a tortura. A procura resulta numa narrativa ágil e bem amarrada, que pode ser lida de um só fôlego, como um thriller. Parte dela foi apurada quando Matheus era repórter de ÉPOCA (período em que convivemos profissionalmente e que me vale uma ponta singela no livro). A cada passo, ele esbarra em novas frustrações ou obstáculos. O chefe da equipe de torturadores, Paulo Malhães, fora assassinado um mês depois de confessar seus crimes à Comissão da Verdade. O comandante militar também estava morto, vítima de um câncer. Matheus não desiste, segue todas as pistas até o final. Consegue entrevistas emocionantes com o delator e com um dos acusados de torturar sua mãe. O primeiro confessa e pede perdão. O segundo nega, mas não se recusa a responder às perguntas. O maior suspense é criado em torno da tentativa de conversar com os filhos do comandante, de início abertos ao diálogo.
A esperança é que a geração seguinte – filhos de torturadores e filhos de torturados – consiga enfrentar em conjunto a verdade, de um lado e de outro, e alcançar alguma forma de reconciliação com um passado tão difícil. Matheus reconhece o equívoco da geração anterior. Compara sua história à de um amigo finlandês, cujos pais lutavam na clandestinidade contra a implantação do comunismo em seu país. O próprio Marcelo, pai de Matheus, admitiu em livro que o Brasil seria pior se os esquerdistas tivessem derrotado os militares e implantado aqui uma ditadura comunista. Mas não há o mesmo desprendimento da parte do Exército. Matheus não obtém acesso a vários documentos e instalações (onde entra por outros meios). Como todo repórter que tenta apurar esse passado, enfrenta a invariável sucessão de mentiras e telefonemas subitamente interrompidos. Será que a integridade das Forças Armadas, instituição essencial para qualquer nação, deve ser preservada à custa da verdade? Omitir da história os crimes do passado não encoraja os mesmos crimes no futuro? Qual o custo de suprimir as memórias? Enfrentá-las é o dever a que Matheus não se furta – e não apenas em nome dos pais, mas sobretudo em nome dos filhos, dos filhos de todos nós.
HELIO GUROVITZ
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