Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso

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Governo de Mato Grosso

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

"A esquerda que não sabe quem é"

Como deixar de apenas reagir, submetendo-se ao ritmo imposto pela extrema direita no poder, e passar a se mover com consistência, estratégia e propósito? A violência dos últimos anos, que culminou nas eleições de 2018, tampou os ouvidos para o que poderia ser considerado o outro lado. Os gritos acusavam a impossibilidade de votar em Jair Bolsonaro (PSL) depois de ouvir o discurso de ódio que ele pregava. Gritou-se até quase acabar a voz. O fato é que a maioria dos eleitores que escolheu um dos candidatos escolheu Bolsonaro, e ele está eleito e já começou a governar desde o dia seguinte ao segundo turno, embora só assuma oficialmente em janeiro. Desde então, ou mesmo muito antes disso, os grupos que se opõem a Bolsonaro se limitam a reagir. A cada declaração, a cada ministro, a cada indício de corrupção amontoam-se mais gritos. É necessário reagir. Mas só reagir é exaustivo. Como o espaço público está saturado de gritos, a reação se esgota em si mesma. Numa época em que se vive de espasmo em espasmo, cada vez mais rápidos, o que parece movimento com frequência é paralisia. A paralisia do tempo da velocidade cria a ilusão de movimento exatamente porque é feita de espasmos. Como parar de apenas reagir e se mover com consistência, estratégia e propósito?
Quero propor uma conversa. Ou talvez duas. A esquerda foi demonizada pela turma do Bolsonaro, do MBL (Movimento Brasil Livre), do Olavo de Carvalho e outras. Para uma parte da população, virou tudo o que não presta, seja lá o que for. Às vezes esquerda e comunismo e marxismo viram uma coisa só no discurso repetitivo e feito para a repetição. E essa coisa que viram pode ser qualquer coisa que alguém diz que é ruim. A reação daqueles que se identificam com a esquerda é acusar os que estimulam esse desentendimento, aqui no sentido de não entender mesmo do que tratam os conceitos, de manipuladores e de desonestos. E com frequência é isso mesmo que são. Mas se fosse só isso seria mais fácil.
O problema é que está muito difícil saber o que a esquerda é. E o que a esquerda propõe que seja claramente diferente da direita. O PT se corrompeu no poder. É um fato. Pode se discutir bastante se o PT é um partido de esquerda. Eu, pessoalmente, acho que foi de esquerda só até a Carta ao Povo Brasileiro, durante a campanha de 2002. Outros encontram marcos anteriores de rompimento com um ideário de esquerda.
Para o senso comum, porém, o PT é um partido de esquerda. Não só é como foi a principal experiência de um partido de esquerda no poder da história da democracia brasileira. Logo, não se corromper no poder, fazer diferente da velha política conservadora, já não é uma diferença da esquerda para a população. Negar que o PT se corrompeu no poder é quase tão delirante — ou mau caráter — quanto negar o aquecimento global provocado por ação humana.
Garantir o emprego e os direitos trabalhistas poderia ser uma outra diferença visível, mas o desemprego voltou a crescer e os direitos do trabalhador começaram a ser cortados já no governo de Dilma Rousseff, a última experiência que a população teve de um governo de esquerda. A reforma agrária poderia ser outra diferença, mas ela não avançou de forma significativa no governo de esquerda. O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que hoje está sendo criminalizado pelo governo de extrema direita, se domesticou quando o PT estava no poder. O mesmo aconteceu com grande parte dos movimentos sociais, que viraram governo em vez de continuar sendo movimentos sociais, o que teria sido importante para garantir a vocação de esquerda do partido no poder. Esta, aliás, é uma história que precisa ser melhor contada.
Também nos governos do PT foram fortalecidos os laços com a bancada ruralista, que foi ganhando cada vez mais influência no cotidiano do poder, e se iniciou um claro projeto de desmantelamento da Funai (Fundação Nacional do Índio). Não é permitido esquecer nenhuma palavra de Gleisi Hoffmann atacando a Funai, quando era ministra da Casa Civil de Dilma Rousseff, assim como não é permitido esquecer nenhuma palavra da ruralista Kátia Abreu, ministra da Agricultura de Dilma, sobre as terras indígenas.
Não custa lembrar que, segundo a Constituição de 1988, as terras indígenas são públicas, de domínio da União, mas de usufruto exclusivo dos indígenas. Toda a articulação para enfraquecer a Funai, até hoje, entre outras várias ações, tem por objetivo mudar a Constituição e abrir as terras indígenas para exploração e lucros privados.
Lula chegou a dizer, em 2006, que os ambientalistas, os indígenas, os quilombolas e o Ministério Público eram entraves para o crescimento do país. Dilma foi a presidente que menos demarcou terras indígenas. A lei antiterrorista, que pode ser piorada e usada para criminalizar ativistas e movimentos sociais no governo de Bolsonaro, foi sancionada por ela. Nenhuma dessas ações e omissões podem ser relacionadas com um ideário de esquerda, pelo menos de uma esquerda que mereça esse nome.
Os governos de Lula e de Dilma reeditaram na Amazônia uma versão das grandes obras da ditadura militar, com hidrelétricas como Jirau e Santo Antônio, estas ainda no tempo de Marina Silva como ministra do Meio Ambiente, no rio Madeira; Teles Pires, no rio Teles Pires; e Belo Monte, no rio Xingu. E só não houve (ainda) as grandes hidrelétricas no rio Tapajós por conta da resistência do povo indígena Munduruku e dos ribeirinhos de Montanha-Mangabal. O complexo hidrelétrico no Tapajós foi temporariamente suspenso também pelo enfraquecimento do governo no processo do impeachment, pela desestabilização das empreiteiras pela Operação Lava Jato e pela desaceleração das exportações de matérias-primas para a China.
Nos governos do PT, comunidades urbanas pobres foram expulsas de suas casas para as obras superfaturadas da Copa e da Olimpíada, assim como povos da floresta foram arrancados de suas ilhas e beiradões para a construção de hidrelétricas. Foi também nos governos do PT que a Força Nacional foi usada para reprimir greve de trabalhadores na construção de Belo Monte e também reprimir protestos da população atingida contra a hidrelétrica.
No enfrentamento da questão das drogas, o governo Lula agravou ainda mais os problemas. A chamada Lei de Drogas, sancionada em 2006, é apontada como uma das causas do aumento do encarceramento de jovens e negros, assim como de mulheres, por pequenas quantidades de substâncias proibidas. Além de acentuar o horror do sistema prisional brasileiro, ainda fortaleceu a desastrosa política de “guerra às drogas”, comprovadamente falida. O Brasil perdeu uma oportunidade histórica de alinhar-se com as políticas públicas mais eficientes já testadas em outros países do mundo.
No final do governo de Dilma Rousseff, até mesmo os melhores projetos construídos nos governos do PT, os claramente de esquerda, como na área da saúde mental, começaram a ser desmanteladas para tentar salvar a presidenta ameaçada de impeachment. Espero que ninguém tenha esquecido que as salas da Coordenação de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde foram ocupadas por pacientes e trabalhadores da rede pública em protesto contra a nomeação de um diretor de manicômio para a área. A luta antimanicomial é claramente uma bandeira ligada à esquerda.

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