Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso

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quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

"O DESAFIO DE SUPERAR AS BARREIRAS INSTITUCIONAIS PARA A NÃO DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO TRABALHO"

Resultado de imagem para Maryluz Barragán González - ColômbiaJohn Jak Becerra Palacios nasceu no departamento de Chocó, na Colômbia, uma região de maioria afro, mas iniciou sua vida profissional em Bogotá, onde viveu a maior parte de sua vida. É pai de dois filhos e chefe de família. John lutou durante sete anos para que a justiça reconhecesse que foi discriminado por ser afrodescendente numa empresa colombiana onde trabalhava como assistente de depósito. Em outubro de 2011, denunciou pela primeira vez os abusos de seus colegas, mas a empresa não só ignorou seu pedido de refrear a situação, como em várias ocasiões manifestou que se tratavam de situações que provinham de sua imaginação e decidiu despedi-lo sem justa causa.
A partir desse momento, começou uma via-crúcis perante instâncias público-administrativas, especialmente o Ministério do Trabalho e a autoridade penal, mas nenhuma instituição resolveu seu caso nem garantiu seu direito de não ser discriminado. Em 2016, John Becerra apresentou uma nova ação judicial constitucional com o objetivo de obter a proteção de vários direitos fundamentais violados por seu empregador, pelo Ministério de Trabalho e pela autoridade penal. O ministério demorara mais de três anos para se manifestar de modo desfavorável a sua queixa de assédio no trabalho; por sua vez, a autoridade penal nunca respondera a sua denúncia por delito de discriminação racial.
Para o litigio constitucional, John contou com o apoio do Dejusticia,1 que denunciou à Corte Constitucional da Colômbia a ineficácia dos procedimentos administrativos judiciais utilizados para tratar dos casos de discriminação no trabalho por motivos raciais. Embora o Dejusticia não costume promover processos judiciais particulares, o caso de John representava uma oportunidade de avanço na proteção dos direitos trabalhistas da população afro. No início de 2016, tomou a decisão de apoiar judicialmente o caso por reunir elementos empíricos que refletiam vários estudos que a organização havia feito a respeito de discriminação no trabalho baseada em raça.
Por fim, somente em julho de 2018 a Corte anunciou a decisão2 que reconheceu que John Becerra foi vítima de discriminação racial e ordenou a adoção de medidas estruturais para conseguir maior efetividade da legislação existente a respeito de assédio no local de trabalho baseado em raça. Com esse pronunciamento, a Corte Constitucional da Colômbia estabelece parâmetros para punir de maneira efetiva as práticas racistas nos ambientes de trabalho. A decisão constitui um precedente importante que pode servir de base para o avanço na proteção dos direitos trabalhistas das pessoas afrodescendentes na região.
O caso descrito, no qual tive a oportunidade de participar estruturando a defesa junto com outras advogadas e advogados afros, implicou vários desafios em sua apresentação e, em particular, em conseguir convencer o juiz constitucional de que se tratava de um fenômeno sistemático que merecia a adoção de medidas estruturais. Para isso, foi necessário traduzir em números a discriminação dos afro-colombianos no emprego e mostrar as falhas da legislação e os mecanismos existentes para corrigir os efeitos do assédio no trabalho baseado em raça.
A situação trabalhista das pessoas afro-colombianas: as barreiras de acesso ao emprego, trabalhos não qualificados e dificuldades para manter o emprego
O caso de John Jak Becerra é somente um dos muitos que ocorrem na Colômbia e na região. Não obstante, existem muitas dificuldades na hora de exercer a defesa das vítimas de assédio no trabalho baseado em raça. Entre essas barreiras, encontra-se a escassez de dados e de estudos para descrever a discriminação no trabalho dos afros3 como um fenômeno sistemático estrutural. Esse foi um dos pontos em que o Dejusticia centrou seu apoio no litígio e, para tanto, realizou uma pesquisa na qual foram feitas várias descobertas relevantes sobre as condições de trabalho dos empregados afros na Colômbia.
Em primeiro lugar, vale a pena esclarecer que quando falamos de discriminação no emprego, referimo-nos a práticas sistemáticas que colocam certos grupos populacionais numa condição de desvantagem no mercado de trabalho, em termos de acesso, tipos de ocupação, possibilidades de ascensão e manutenção do emprego. Essa prática supõe um tratamento diferenciado com base em raça, cor, sexo, orientação sexual ou outros motivos diferentes de suas aptidões e competências no trabalho. Trata-se, então, de uma problemática que tem sua origem em fatores históricos, sociais e econômicos que carecem de um fundamento objetivo, mas que causam efeitos materiais na vida das pessoas.4

Na discriminação no emprego, os preconceitos costumam desempenhar um papel fundamental, pois o tratamento diferenciado se baseia em imaginários negativos que existem em relação a grupos minoritários. Disso decorre que um dos problemas comumente enfrentados pelos empregados pertencentes a esses grupos são os estereótipos que pesam sobre eles, cujo impacto negativo transcende as tensões no local de trabalho, pois influem nas oportunidades de desenvolvimento pessoal, econômico, profissional e integração social das pessoas discriminadas.
Na Colômbia, a população afrodescendente encontra-se em condições sociais e econômicas mais precárias do que o resto da população.5 Essa realidade também se evidencia ao estudarmos a participação da população afro-colombiana no mercado de trabalho, em que se destaca uma preocupante disparidade nas barreiras de acesso, nos tipos de ocupação exercida e nas dificuldades de conservação do emprego. Para o caso de John Becerra, foi fundamental a apresentação de dados concretos para a descrição do fenômeno manifestado nessas três realidades.
Em relação às barreiras de acesso, de acordo com o estudo “La discriminación racial en el Trabajo” realizado pelo Dejusticia e o Observatório de Discriminação Racial,6 a raça é um fator determinante na probabilidade de uma resposta positiva a um pedido de emprego na cidade de Bogotá. Como resultado desse estudo, descobriu-se que as probabilidades de receber uma chamada para entrevista reduzem-se em 7,79% quando se trata de candidatos afrodescendentes, enquanto que para as pessoas brancas aumentam em 3%.
No que diz respeito ao tipo de ocupação exercida, no “Informe Raza y Derechos Humanos” realizado pelo Observatório de Discriminação Racial,7 documenta-se a sobrerrepresentação de afro-colombianos no nível de ocupação manual baixo,8 que corresponde a trabalhadores de serviços não qualificados. Descobriu-se que mais da metade dos trabalhadores afrodescendentes se situam nesse nível (53,5%), em comparação com 40% dos trabalhadores mestiços. Em contraste, à medida que aumentava o nível de qualificação, diminuía a participação de afro-colombianos e aumentava a distância entre eles e pessoas mestiças. Assim, no nível manual alto, encontram-se 23% de afrodescendentes e 31% de mestiços. Isso permite concluir, em princípio, que estamos frente a um fenômeno de segregação racial no mercado de trabalho, no qual o fenótipo é um fator que determina as oportunidades para ocupar um determinado cargo ou ofício.
Do mesmo modo, os empregados afros costumam ser vítimas de discriminação no trabalho, situação que incide diretamente nas dificuldades para conservar o emprego. Foi o que revelou o estudo “Precario pero con trabajo: ¡otros están peor!”, realizado em 2012 por pesquisadores de várias universidades colombianas.9 Nesse estudo, concluiu-se que existia um déficit nas condições dignas dos trabalhos executados por afro-colombianos. A pesquisa destacou a percepção generalizada dos trabalhadores de que existe discriminação em seu ambiente de trabalho, principalmente contra os afros (36,6%), seguida das pessoas de outras etnias e dos adultos idosos (17%).
Esses dados foram peças fundamentais para argumentar e convencer o juiz de que a raça é um fator preponderante de discriminação no ambiente de trabalho na empresa privada. E essa realidade se manifesta em três dimensões: primeiro, em barreiras para acessar o emprego devido à institucionalização de processos discriminatórios de seleção de candidatos; segundo, no papel preponderante dos estereótipos, ao reservar os trabalhos mais técnicos e especializados para pessoas não afrodescendentes; terceiro, em atos de assédio por parte dos demais empregados do mesmo nível ou superiores hierárquicos, o que se traduz em ambientes de trabalho hostis que dificultam aos empregados afrodescendentes a possibilidade de manterem seus empregos.
Isso foi suficiente para demonstrar a necessidade de dar ordens estruturais orientadas que garantirão maior efetividade aos mecanismos legais existentes a fim de corrigir a discriminação racial no ambiente de trabalho da empresa privada.10 Embora fosse desejável solicitar medidas para contra-arrestar as barreiras de acesso ao emprego e de ascensão na carreira, o certo é que, por técnica de litígio, o caso só permitia que nos concentrássemos em solicitar medidas para desincentivar a tolerância a atos de discriminação na empresa, motivo pelo qual os empregados afrodescendentes perdem o emprego.
Um precedente importante na luta contra o assédio baseado em raça
Esse litígio é importante porque conseguiu mostrar à Corte Constitucional da Colômbia os desafios que um empregado afrodescendente enfrenta no trabalho, depois de superar as barreiras para obter um emprego formal. A contratação de uma pessoa afro é somente o primeiro passo: o mais difícil é manter-se no emprego trabalhando em ambientes hostis, devido à tolerância das empresas aos atos de discriminação racial. Neste caso, John não só mostra de maneira clara os obstáculos impostos pela empresa, como também os dos organismos do Estado obrigados a prevenir e corrigir o assédio no trabalho baseado em raça.
Na decisão que resolveu o caso, a Corte analisou o assédio no trabalho em três níveis. Em primeiro lugar, afirmou que as manifestações ofensivas entre colegas de trabalho constituíam assédio no trabalho. Isso representa um precedente relevante, posto que se admite que a linguagem importa e, portanto, são inadmissíveis as expressões que façam referência à raça dos empregados usadas para ofender. Em consequência, ficou estabelecido que a ofensa verbal por parte de colegas constitui assédio no trabalho e é uma conduta que a empresa não pode permitir.
Em segundo lugar, a sentença impõe às empresas privadas o dever de prevenir e repelir esse tipo de situação no trabalho. Nesse sentido, ela deixa claro que a empresa não só deve assegurar o cumprimento da lei adotando mecanismos contra o assédio no trabalho baseado em raça, como também deve garantir que os mesmos sejam efetivos e eficazes. Em outros termos, não basta ter instâncias de convivência, mas os procedimentos para tramitar as queixas por discriminação devem cumprir a finalidade de solucionar os conflitos raciais.
Em terceiro lugar, a Corte deu ordens ao Ministério do Trabalho no sentido de que capacitasse seus funcionários para receberem e tramitarem devidamente as queixas por assédio no trabalho baseado em raça. Do mesmo modo, a Corte obriga o Ministério a desenvolver uma metodologia para o tratamento de vítimas de discriminação racial no trabalho dentro do prazo de seis meses. Isso é vital para assegurar o acesso à Justiça das vítimas de discriminação racial, as quais, com frequência, ficam afogadas em trâmites burocráticos, sem que consigam ver uma solução de fundo para seus problemas.
A sentença supõe um avanço significativo na luta pela justiça racial no campo do trabalho, mas restou um passo pendente. Dentro das principais expectativas do litígio, estava a regulamentação da responsabilidade civil das empresas pela tolerância de atos de racismo no trabalho. Isso seria importante porque abriria a possibilidade de indenização pecuniária, conforme a lógica de indenização de prejuízos materiais e morais causados pela ação ou omissão irresponsável da empresa contra as vítimas de discriminação racial.
Não cabe dúvida de que a decisão da Corte significou um progresso em matéria legislativa na Colômbia para contra-arrestar o fenômeno da discriminação racial no trabalho. Não obstante, tal como demonstra o caso de John Becerra, as normas não são suficientes se não forem aplicadas e, para isso, é necessária uma mudança na cultura organizacional das empresas e dos funcionários públicos encarregados da tarefa de prevenir e corrigir o assédio no trabalho baseado em raça. Por um lado, com uma mudança nas empresas, assegura-se uma consciência de não tolerância dos atos de discriminação e o desenvolvimento de mecanismos eficazes para a solução de conflitos. E por outro lado, com a mudança nas instituições estatais, consegue-se um trâmite eficiente, efetivo e oportuno das queixas de assédio no trabalho por raça e a consequente proteção dos direitos das vítimas de discriminação racial no emprego. É nesse sentido que vemos as ordens dadas pela Corte Constitucional, o que supõe um grande passo na efetividade da proteção dos direitos trabalhistas dos empregados afrodescendentes da empresa privada.
Adendo: Como advogada afro dedicada ao litígio em questões de justiça racial, expresso meu mais sincero agradecimento a John Jak Becerra Palacios por sua valentia e por sua coragem que são exemplo para nossa geração.
Maryluz Barragán González - Colômbia
Advogada, formada pela Universidade de Cartagena e mestre em Estudos Críticos de Raça pela Universidade da Califórnia, Los Angeles – UCLA. Foi assessora para a Colômbia em questões de responsabilidade extracontratual do Estado e diversidade no emprego público. Atualmente é pesquisadora da área de litígio estratégico da ONG Dejusticia. Também faz parte do Observatório de Discriminação Racial da Universidade dos Andes.

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