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segunda-feira, 2 de março de 2020

Ernesto Cardenal, o "poeta infinito"

Com fundo preto, Ernesto Cardenal, poeta e sacerdote nicaraguense, veste sua característica boina sobre os cabelos brancos na altura dos ombros. Olha pelos óculos e com sua barba branca para a frente, durante oficina de literatura em BerlimPadre e poeta nicaraguense morreu aos 95 anos. Crítico ferrenho do governo de Daniel Ortega, ele foi protagonista da revolução sandinista e figura-chave da Teologia da Libertação, que enfatiza luta por justiça social. "Ernesto Cardenal morreu", avisa uma mensagem no Whatsapp. A notícia voa nas redes sociais, como acontecia todas as vezes em que ele era levado com urgência ao hospital, de onde saía gracioso, zombando da morte e dos médicos, para continuar escrevendo livros. Até este domingo (01/03). "Seu coração falhou", disse a escritora nicaraguense Gioconda Belli, ao comunicar a notícia durante a tarde. "Nosso amado poeta acaba de morrer aos 95 anos, após uma vida de dedicação à poesia e à luta pela liberdade e justiça."
Para muitos, a vida do emblemático escritor, sacerdote, teólogo e escultor nascido em Granada, na Nicarágua, em 20 de janeiro de 1925 não foi apenas um marco na literatura de seu país e da América Latina, mas também deixa um legado de compromisso com os mais preciosos valores humanos, a partir de suas palavras e de sua poesia.
Cardenal cresceu numa família rica e estudou literatura em Manágua, capital da Nicarágua, e em Nova York, nos Estados Unidos. No início dos anos 1950, publicou seus primeiros poemas, inicialmente eróticos. Mais tarde, o poeta explicaria: "O amor pela beleza da natureza e pelas mulheres me levou a Deus; e o amor a Deus, à revolução."
Fundador, na década de 1970, de uma comunidade de camponeses pintores e poetas guerrilheiros no arquipélago de Solentiname, no sul da Nicarágua, Cardenal percorreu o mundo vestindo sua indispensável boina, jeans e sandálias para denunciar os crimes do ditador Anastasio Somoza, que acabou derrubado pelos sandinistas em 1979.
Durante a revolução sandinista (1979-1990), Cardenal foi ministro da Cultura da Nicarágua e um dos expoentes da Teologia da Libertação, corrente da Igreja Católica fundada na América Latina que enfatiza a ética social cristã em defesa dos pobres e oprimidos. O exercício à frente do ministério o levaria a ser suspenso pelo papa João Paulo 2º em 1985.
Dois anos antes, em 1983, quando foi receber o papa no aeroporto em Manágua, o poeta tirou sua famosa boina e ajoelhou-se para beijar a mão do líder da Igreja Católica, mas João Paulo 2º retirou a mão e se recusou a dar a honra ao então padre.
A proibição de exercer o sacerdócio foi anulada há apenas um ano pelo papa Francisco, gesto que o poeta recebeu celebrando uma missa pela primeira vez em trinta anos, ainda na cama do hospital onde estava internado na ocasião.
Foto de 1980 mostra Cardenal (à dir., com braço acenando) durante cerimônia em que recebeu o Prêmio da Paz do Comércio Livreiro AlemãoCardenal sempre buscou a fé à sua própria maneira. Segundo ele, "uma igreja hierárquica está do lado dos ricos". O católico rebelde sempre ficou do lado dos pobres, apoiando programas de alfabetização na Nicarágua, fundando livrarias e uma editora. Seu objetivo era fazer com que os pobres no país tivessem acesso à cultura.
Na década de 1990, depois de os sandinistas perderem o poder nas urnas para Violeta Chamorro (1990-1997), o poeta abandonou o partido por dissidências com a liderança de Daniel Ortega (1985-1990 e 2007 até hoje), assim como fizeram outros ex-guerrilheiros e intelectuais conhecidos. Cardenal passou a se dedicar completamente à escrita, à escultura e à realização de oficinas de poesia para crianças com câncer num hospital em Manágua.
Às suas primeiras e conhecidas obras, como Salmos, Epigramas e Hora zero, se somaram Vida perdida e O evangelho de Solentiname, entre outros de uma vasta produção literária traduzida para mais de 20 idiomas e citada em cerca de 20 antologias.
Por seus livros Cântico cósmico e Telescópio da noite escura (ambos de 1993), Este mundo e outro (2011), Assim na Terra como no céu (2018) e Filhos das estrelas (2019), alguns o chamaram de "o poeta infinito".O impulso de sua produção sempre foi a utopia de um mundo mais justo. Para alcançar esse objetivo, Cardenal não via outra solução senão "colocar o mundo de cabeça para baixo e renová-lo totalmente". A visão ainda é sensível em sua obra, cuja produção ele estendeu até sua morte.
Com o passar dos anos, sua produção literária ficou cada vez mais religiosa; e a perspectiva religiosa, cada vez mais política. O sacerdote Cardenal costumava comparar a mensagem de sua poesia com a dos profetas bíblicos, "porque faziam uma acusação e um anúncio: a acusação da injustiça dominante e o anúncio de um mundo melhor".
Seus poemas e publicações renderam-lhe o Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão em 1980, o Prêmio Pablo Neruda em 2009, o da Rainha Sofía de Poesia Iberoamericana em 2012 e o Prêmio Mario Benedetti em 2018. Em 2005, o poeta foi indicado ao Prêmio Nobel de Literatura.
Após o retorno de Ortega ao poder, em 2007, a voz de Cardenal voltou a ser ouvida, mas agora para denunciar a "nova ditadura" na Nicarágua. Com a mesma veemência, o poeta respaldou, em abril de 2018, os protestos antigoverno de jovens que colocaram a liderança do país em xeque.
"A situação está pior. Queremos sair disto, queremos uma mudança total de país, uma verdadeira mudança social", disse ele em entrevista exclusiva à DW em março de 2019. "Queremos simplesmente que o casal presidencial [Daniel Ortega e sua esposa e vice-presidente, Rosário Murillo] vá embora."
Cardenal vivia, literalmente, atravessando a rua no bairro Los Robles, em Manágua. Numa ocasião, há mais de três anos, o romancista e ex-vice-presidente nicaraguense Sergio Ramírez ofereceu a Cardenal que mudasse para a sua casa quando um juiz sandinista ameaçou o poeta de despejo por causa de um litígio de posse de terrenos em Solentimane, onde ele fundara sua comunidade.
E foi precisamente Ramírez que se despediu do amigo no Twitter, emocionado, lembrando um dos poemas de Cardenal que expunha o efêmero da existência humana (tradução livre):
Como latas de cerveja vazias e bitucas
de cigarros apagados, têm sido meus dias.
Como figuras que passam por uma tela de televisão
e desaparecem, assim tem sido minha vida.
Como os automóveis que passavam rápidos pelas estradas
com risos de garotas e músicas de rádios...
E a beleza passou rápido, como o modelo dos carros
e as canções das rádios que saem de moda.
E não ficou nada daqueles dias, nada
mais que latas vazias e bitucas apagadas,
risos em fotos murchas, bilhetes rasgados,
e a serragem com que, ao amanhecer, varreram os bares.
Gabriela Selser, Carolina Machhaus (rk)Caminho Político

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