
As teorias da conspiração já tinham conquistado uma posição forte na Alemanha durante a crise dos refugiados de 2015. Na época, dizia-se que a chanceler federal havia planejado secretamente um "repovoamento" da Alemanha e que havia intencionalmente inundado o país com pessoas do Oriente Médio.
Já naquela época se suspeitava, nesses círculos, de uma conspiração mundial. Desde então, o nome do bilionário e filantropo George Soros vem sendo repetidamente mencionado, usado como suposta prova de uma conspiração mundial judaica. Tudo isso é semeado pelos chamados "cidadãos do Reich", que negam à República Federal qualquer legitimidade e emitem os seus próprios documentos de identidade.Várias destas teorias conspiratórias, de tão tristes, chegavam a ser engraçadas. Naquele período, não tive a sensação de que a corda dos conspiradores estivesse se estreitando a minha volta. Desta vez é diferente. Por quê? Talvez porque a pandemia esteja realmente afetando todo mundo – todo mundo.
Ninguém passa ileso por ela: as crianças não podem ir à creche, jardim de infância, escola. Os pais têm de tomar conta deles em casa e continuam a ser responsáveis pelo seu sustento. Universidades estão fechadas. Do restaurante à cabeleireira, todos os negócios estão fechados há semanas. Existências estão sendo destruídas, embora, em muitos países, cada vez mais setores estejam sendo autorizados a reabrir gradualmente. Aqueles que estão doentes, mas não têm covid-19, têm que esperar pela cirurgia. Quem está velho não pode mais ver familiares e amigos. E aqueles que morrem devido à infecção morrem de uma lenta asfixia.
Poderá isso ser realmente verdade? Um vírus pode realmente fazer isso com a gente? Grande parte da sociedade diz que "sim”, com um suspiro e talvez até com lágrimas nos olhos, e é confrontada com uma multidão que ruge, que se acumula, de perto, em locais públicos e exige em voz alta o fim da quarentena.
Eles estão unidos pela firme convicção de que "aqueles que estão lá em cima" estão mancomunados com o mal. Em 2015, podem ter entrado em cena aqueles que sempre foram contra a imigração. Mas não foram os fatos que estiveram em debate, e sim o plano dos políticos para lidar com um fato - o de haver cerca de um milhão de refugiados que foi criticado.
Hoje em dia, o foco principal está nos fatos – no caso, a propagação de um vírus. E já neste ponto parece não haver mais acordo: para alguns, a covid-19 não é pior do que uma gripe sazonal. Outros se fiam à posição de uma pequena minoria na comunidade internacional - na imunidade de rebanho. Outros – um tal movimento já existente há muito tempo - rejeitam qualquer vacinação como inútil. Embora nem sequer exista ainda uma vacina contra a doença.
O que significa quando uma sociedade não consegue mais chegar a acordo sobre os fatos básicos? Então, se isso ainda não tiver acontecido, mais cedo ou mais tarde faltará a essa sociedade lugar ou instituição que possa criar espaço público de debate e moderar a discussão sobre diferentes formas de interpretar os fatos.
Na Alemanha, este vírus propagou-se agora a todas as áreas da sociedade: até um pequeno círculo de bispos católicos de alto nível publicou uma carta em que se murmurava algo sobre o "governo mundial".
Para os autocratas, que nos últimos anos desacreditaram os especialistas e menosprezaram as elites, este espetáculo é uma celebração. O povo, terão o prazer de dizer, foi capturado com êxito por eles. Já não será mais cantado um cântico dos cânticos à educação, mas a charamela será sacada, e estrofes de louvor serão oferecidas ao homem forte. Ridicularizada será a modéstia com que o conhecimento normalmente aparece e, em vez disso, o boato jactancioso será glorificado. No final, a estupidez e a superstição vão se tornar os pregos do caixão da nossa democracia. Este declínio não tem nada a ver com o coronavírus, mas sim com o veneno que os populistas nos incutem há anos.
Alexander Görlach vive em Nova York e é membro sênio do Carnegie Council para Ética e Assuntos Internacionais e pesquisador sênior associado da Universidade de Cambridge, junto ao Instituto para Religião e Estudos Internacionais. Com doutorado em linguística e teologia, foi também bolsista e acadêmico visitante na Universidade de Harvard de 2014 a 2017 e acadêmico visitante na Universidade Nacional de Taiwan e na Universidade da Cidade de Hong Kong de 2017 a 2018.
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