"O projeto de uma reconciliação de todos com todos é um projeto, em última análise, violento. Entre os desacordos, alguns são não negociáveis. É necessário distinguir aqueles de que se pode discutir daqueles de que não se pode discutir. Nós mesmos fazemos uma espécie de divisão entre aqueles que nos parecem suscetíveis de participar da relação que chamo de 'consensual-conflitual' e aqueles que não podem entrar nela e para os quais é necessário continuar a dizer 'nenhuma tolerância com os intolerantes'", escreveu o filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005), especialista em hermenêutica e fenomenologia, em artigo póstumo[1] publicado por La Repubblica e Caminho Político. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
As reflexões que gostaria de apresentar partem de um questionamento da validade, ainda hoje, daquilo que foi uma grande conquista: o modelo de tolerância. De fato, a vitória sobre a intolerância é uma vitória sobre um forte princípio da natureza humana, ou seja, a tentação para qualquer um com um pingo de poder - ou um grande poder - de impô-lo aos outros.
Ora, se a intolerância é armada por um “poder sobre”, ela é justificada por quem a exerce a partir da suposta legitimidade de uma crença, de uma convicção. E, por sua vez, essa presunção de legitimidade resulta da desaprovação de crenças, das convicções e dos estilos de vida opostos ou simplesmente diferentes.
A Europa das guerras de religião foi, neste sentido, o cenário, o campo de exercício e o exemplo paradigmático da luta contra a intolerância. É a história exemplar de um duplo processo de deslegitimação do direito de impedir e de desarme do poder de impedir. O primeiro nível poderia ser resumido na fórmula: "Relutantemente suporto o que desaprovo, porque não tenho o poder para impedi-lo". Se tivéssemos que situar este primeiro nível historicamente, seria, no contexto europeu, a Paz de Westfália - Cujus regio, ejus religio; o que não se pode impedir aqui, é tolerado lá. A segunda etapa é a seguinte: “Desaprovo o teu modo de viver, mas tento compreendê-lo sem poder aderir a ele”. Esse segundo nível é representado, histórica e cronologicamente, por personagens como Erasmo, Melâncton e Leibniz e, portanto, na esfera religiosa, pelo primeiro ecumenismo.
Mas, justamente, não passa de uma fase insustentável caso não se prossiga para aquela sucessiva, que é a fase decisiva: "Desaprovo o teu modo de viver, mas respeito a tua liberdade de viver como preferir, porque reconheço o teu direito de manifestar publicamente tal liberdade". Ainda não se fala de verdade compartilhada, mas de direito reconhecido. É nesta fase que colocaria os modelos da Idade das Luzes. Para os homens do Iluminismo, os religiosos são supersticiosos. E para os religiosos, a verdade continua sendo transcendente. No entanto, é neste clima de desaprovação mútua, mas de reconhecimento do direito à apostasia, que se forjaram as liberdades de opinião, de expressão, de associação, de imprensa, de manifestação, de ensino, culminando na mais alta das liberdades, a liberdade positiva, ou seja, o igual direito de participar ativamente na constituição do poder político, quaisquer que sejam as crenças em jogo.
A possibilidade de um ponto de ultrapassagem estaria ligada àquela que chamo de quarta fase. A terceira fase era a etapa decisiva, esta seria a virada: “Não aprovo nem desaprovo as razões pelos quais tu vives de modo diferente de mim, mas talvez estas razões expressem uma relação com o bem e a verdade que me escapa por causa da finitude da compreensão humana". Ora, com esta fase, se designa um "além" do direito ao erro, que é a presunção de que tu possuas uma porção de verdade, que tu toques um lado da verdade que não é o meu, mas que como o meu está na verdade.
Portanto, talvez, e aliás provavelmente, se não certamente, existe alguma verdade fora de mim. É neste ponto que tudo pode escorregar da tolerância à indiferença. É a quinta fase, em que o reconhecimento das diferenças se torna indiferença. A passagem da diferença para a indiferença me parece típica da sociedade em que vivemos. Denunciamos veementemente o horror dos campos de deportação e de extermínio, a pedofilia, as desigualdades extremas ... Esses são certamente "males" reconhecidos, mas não sabemos de qual "bom" eles sejam o avesso. Essa barreira colocada contra a indiferença só pode provocar uma política mínima: impedir de prejudicar. Mas a injunção para não prejudicar, embora muito mais evidente, continua mais fraca do que a injunção para fazer o bem.
Para além da abstenção para proibir, seria o que John Rawls acertadamente definiu como "consenso por intersecção", ao qual acrescentou mais recentemente "a aceitação de desacordos razoáveis". É preciso admitir que há algo irredutível nas diferenças de convicção. O projeto de uma reconciliação de todos com todos é um projeto, em última análise, violento. Entre os desacordos, alguns são não negociáveis. É necessário distinguir aqueles de que se pode discutir daqueles de que não se pode discutir. Nós mesmos fazemos uma espécie de divisão entre aqueles que nos parecem suscetíveis de participar da relação que chamo de "consensual-conflitual" e aqueles que não podem entrar nela e para os quais é necessário continuar a dizer "nenhuma tolerância com os intolerantes".
Nota:
[1] Tradução de Mario Porro. Este texto é um excerto do ensaio de Paul Ricoeur (1913-2005) Per una nuova fondazione dell’idea di tolleranza, publicado na revista Vita e Pensiero (n. 4/2021, € 10).
Artigo póstumo[1] publicado por La Repubblica e Caminho Político. A tradução é de Luisa Rabolini. Edição: Régis Oliveira @caminhopolitico @cpweb
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