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domingo, 4 de agosto de 2024

CAMINHO DO ESPORTE PARIS: Alemanha Oriental, uma potência olímpica anabolizada

Para a antiga RDA, vitórias em torneios mundiais iam além de recordes e medalhas: era uma forma de o regime projetar sua imagem internacional. E para isso o regime transformou o doping de atletas em política estatal. Nos Jogos Olímpicos de 1976, em Montreal, o time de futebol da República Democrática Alemã (RDA) conseguiu o impensável: empatar contra o Brasil. E o paisinho sob regime socialista continuou fazendo frente ao talentoso gigante do futebol: nas partidas seguintes, seus jogadores superaram todas as expectativas, consagrando-se primeiro time alemão a conquistar ouro olímpico nesse esporte. Até hoje, é a única vitória de uma seleção masculina alemã nesse torneio internacional.
Os esportistas eram o grande orgulho da Alemanha Oriental, sendo até apelidados de "diplomatas de uniforme de treino", lembra Jutta Braun, historiadora do Centro Leibniz de Pesquisa Histórica Contemporânea de Potsdam (ZZF). O Estado os patrocinava com verbas generosas, os promovia e impulsionava até o limite da performance humana.
Mas aí a RDA entrou em colapso, praticamente de um dia para o outro: as associações esportivas faliram, muitos atletas sumiram da ribalta ou até ficaram desempregados.
Este não é, contudo, o único motivo da queda de tantos heróis do esporte. Uma investigação revelou que o regime sistematicamente dopava os atletas ou os forçava a tal. Assim, numerosos recordistas perderam sua fama, seus êxitos foram obscurecidos. Heróis caíram no esquecimento, apesar – ou, justamente, por causa – de sua significação para o Estado.
Em sua curta existência competindo como uma equipe olímpica distinta, a Alemanha Oriental, um país de 17 milhões de pessoas, acumulou 409 medalhas nos Jogos de Verão: 153 de ouro, 128 de prata e 162 de bronze. E tudo isso em apenas em apenas cinco olímpiadas entre 1968 e 1988. Se somadas os Jogos de Inverno, o total de medalhas solta para 519. Para efeito de comparação, o Brasil acumulou pouco mais de 150 medalhas em pouco mais de 100 anos de participação nos Jogos de Verão .
Mas o lado obscuro de muitas dessas vitórias da Alemanha Oriental só se revelaria anos mais tarde: substâncias para estimular o desempenho haviam catapultado os esportistas para além dos limites do possível.
Rivalidade Leste-Oeste
A associação Doping-Opfer-Hilfe, de ajuda às vítimas dessa prática esportiva ilegal, estima que, a partir de meados da década de 1970, cerca de 15 mil alemães-orientais, muitos dos quais ainda menores de idade, foram forçados a participar do programa estatal de doping.
"Em 1974, o governo criou um plano nacional no qual decidiu que todos os atletas das equipes esportivas de elite receberiam hormônios sexuais masculinos. Isso incluia crianças a partir de oito anos de idade e até as equipes nacionais. Foram cerca de 15.000 pessoas, nenhuma das quais tinha uma alternativa. Você não podia dizer: 'Eu não vou fazer isso'", contou a ex-atleta Ines Geipel à DW em 2014.
O mais dramático nesse desmascaramento do falso milagre esportivo da RDA, é que as medalhas de ouro significavam muito mais do que êxito no setor: elas eram uma peça de quebra-cabeças numa autoimagem cuidadosamente polida e cultivada.
Quatro anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, o país se dividira em dois Estados: a socialista República Democrática Alemã (RDA) no leste, e a capitalista República Federal da Alemanha (RFA) no oeste. E, enquanto esta última brilhava como potência econômica emergente, sua irmã menor lutava por reconhecimento internacional.
"A questão não eram só os metros e segundos, mas sim representar a 'Alemanha melhor'", explica Jutta Braun. Cada vencedor no pódio significava um triunfo do socialismo; em troca, a RDA recompensava seus campeões esportivos com dinheiro, carros e imóveis.
Na Copa do Mundo de Futebol de 1974, realizada na RFA, as duas Alemanhas até chegaram a se confrontar. Nas classificatórias, surpreendentemente, a RDA venceu por 1 a 0. A Alemanha Oriental triunfava; no Oeste, os torcedores zombavam de seus craques.
No entanto a seleção ocidental tirou proveito da derrota: impelido pelo fiasco, o time liderado por Franz Beckenbauer passou a jogar melhor. Além disso, graças à derrota frente aos alemães-orientais, a seleção da RFA entrou para um grupo mais fácil, enfrentando a Polônia, Suécia e Iugoslávia, chegou à final e consagrou-se campeã do mundo. A RDA foi desclassificada, no grupo da Holanda, Brasil e Argentina.
Após escândalos de doping: as vitórias são válidas?
Durante a existência da RDA, surgiram indícios de doping entre vários atletas do país durante competições no ocidente. Alguns atletas acabaram sendo reprovados em exames, mas, casos isolados também eram comuns entre esportistas ocidentais. Foi só depois da reunificação das duas Alemanhas, em 1990, que a escala do programa revelou o doping como política estatal da antiga Alemanha Oriental.
Nas décadas seguintes, ex-atletas procuraram compensação na Justiça por causa dos efeitos colaterais que as drogas provocaram em seus corpos. Em 2016, Doping-Opfer-Hilfe obteve seu primeiro sucesso quando o governo alemão concedeu 10,5 milhões de euros aos atletas em 2016. No mesmo ano, foi a vez do Parlamento alemão aprovar uma nova Lei de Assistência às Vítimas de Doping, estabelecendo um fundo de 13,65 milhões de euros para fornecer assistência financeira aos ex-atletas.
O doping estatal da RDA e a rivalidade entre os dois Estados explicam a fama perdida de muitos de seus esportistas. O antigo brilho de grande parte das vitórias se apagou. Além disso, a cultura da memória da Alemanha reunificada se concentra antes na parte ocidental.
O fato se reflete também no Hall da Fama do Esporte Alemão. Nesse local virtual em homenagem aos atletas e personalidades do setor, só se encontram poucos protagonistas do Leste. A opinião pública se divide, em relação a antigas lendas do esporte da RDA: tratava-se de heróis de verdade, ou suas vitórias foram mero efeito de doping?
É fato que o doping era organizado pelo Estado, era parte integrante do "milagre esportivo" alemão-oriental. Mas também é fato que até hoje muitos dos atletas afetados juram inocência e defendem suas vitórias, sentem-se injustamente preteridos e lutam pelo reconhecimento do próprio desempenho. Medalhas e recordes, afinal, só contam uma parte das histórias dos heróis.
Aline Spantig/Caminho Político
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