Presidente americano será o primeiro a visitar a floresta no exercício do cargo. Mas em 1913, Roosevelt, já fora da Casa Branca, fez uma perigosa expedição ao longo de um rio então desconhecido – e não morreu por pouco. Quando o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, pousar em Manaus no domingo (17/11), ele ganhará o status de primeiro presidente do país a visitar a Amazônia no exercício do cargo. Mas um outro famoso ex-presidente americano, Theodore Roosevel, já pisou por lá, e de forma muito mais radical: fez uma expedição de 136 dias para desbravar um rio então desconhecido.
Quando foi convidado a visitar a Amazônia, em 1913, Roosevelt, então com 55 anos, já não era mais presidente. Um ano antes, ele até tentara voltar à Casa Branca, sem sucesso: após dois mandatos consecutivos, de 1901 a 1909, perdeu a eleição de 1912 para o democrata Woodrow Wilson.
De espírito desbravador, Roosevelt já havia participado de um safári na África, em 1909. Estima-se que, em dois anos de expedição, ele e o filho, Kermit, abateram mais de 500 animais, entre leões, zebras e gazelas. Por isso, aceitou participar da aventura em terras brasileiras sem pensar muito nas consequências. "É minha última chance de me sentir um garoto de novo", declarou à época. Não morreu por pouco.
O convite para desbravar a Floresta Amazônica partiu de Lauro Müller, então ministro das Relações Exteriores do governo Hermes da Fonseca. Ele sugeriu que Roosevelt fosse acompanhado por um ex-colega da Escola Militar, Cândido Rondon. O coronel topou, mas impôs uma condição: não queria ser guia turístico de uma caçada esportiva e, sim, o líder de uma expedição científica. Enquanto Roosevelt coletaria espécies da flora e da fauna brasileiras para o acervo do Museu de História Natural de Nova York, Rondon investigaria a foz de um rio que, não por acaso, era chamado como rio da Dúvida – ninguém sabia ao certo onde ele desaguava.A expedição científica Roosevelt-Rondon (ou Rondon-Roosevelt, como preferem alguns) teve início em 12 de dezembro de 1913 e chegou ao fim em 27 de abril de 1914. Na comitiva de 22 homens, Roosevelt levou, além do filho, Kermit, de 25 anos, dois cientistas do Museu de História Natural, George K. Cherrie e Leo E. Miller, e um padre, John A. Zahm. A certa altura, Zahm chegou a ser convidado por Roosevelt a voltar para casa. Motivo? Queria ser carregado numa padiola por indígenas do povo pareci. Já Rondon levou, entre os 18 homens de sua confiança, um médico, um cozinheiro e um mateiro indígena. Além de três cachorros: Trigueiro, Cartucho e Lobo.
A expedição foi repleta de perigos. A começar pelo rio. Descoberto em 1909 pelo próprio Rondon, tem 679 quilômetros de extensão e percorre três estados: nasce em Rondônia, atravessa o Mato Grosso e desemboca no Amazonas. Lá, torna-se afluente do Aripuanã.
Quatro canoas foram tragadas por redemoinhos, levando boa parte dos mantimentos. Num deles, o remador Antônio Simplício da Silva, depois de fazer uma manobra arriscada a pedido de Kermit, morreu. Famintos e exaustos, os membros da expedição tiveram que talhar novas embarcações em troncos de tatajuba. "A expedição precisava de gente que soubesse fazer canoa porque, mais cedo ou mais tarde, eles iam precisar", explica o jornalista Pedro Libânio, doutor em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e estudioso da obra de Cândido Rondon. "Os expedicionários americanos cogitaram a hipótese de trazer canoas canadenses para o Brasil. Já imaginou? Não iam durar nem um minuto".
Em outro trecho da expedição, brasileiros e americanos, impedidos de seguir viagem pelo rio caudaloso, foram obrigados a arrastar as canoas floresta adentro. Para piorar, o cardápio da comitiva se resumia, por vezes, a apenas dois pratos: carne de macaco ou sopa de tartaruga.
"Roosevelt demonstrou menosprezo pelo homem da Amazônia ao afirmar que, por mais fortes e diligentes que fossem, os caboclos ribeirinhos não se comparavam aos hábeis lenhadores do Hemisfério Norte", relata o historiador João Klug, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). "Para Roosevelt, a floresta tropical era uma espécie de barbárie que precisava de um choque civilizacional. A fauna brasileira era vista como inferior e não como diferente. Os jacarés eram animais horrendos que precisavam ser abatidos a todo custo".
Três mortos e ataque de flechas
A expedição teve ao menos três baixas: morreram, além de Simplício da Silva, o sargento Manoel Vicente da Paixão, por assassinato, e o soldado Júlio de Lima, que desertou. Paixão, o cozinheiro da tropa, suspeitou que Lima estivesse roubando comida. Acuado, Lima matou Paixão com um tiro de espingarda. "O episódio ilustra bem o choque de mentalidades entre Rondon, um humanista, e Roosevelt, um pragmático. Enquanto Roosevelt queria executar o assassino, Rondon declarou que não havia pena de morte no Brasil. Por essa razão, o criminoso deveria ser julgado", cita o cineasta Joel Pizzini, diretor do documentário O Rio da Dúvida (2018).
Enquanto os dois discutiam em francês – a única língua que ambos dominavam –, Lima correu para o mato e nunca mais foi visto. Suspeita-se que tenha sido atacado por indígenas ou devorado por onças. "Questões levantadas por Rondon, como a convivência pacífica com os povos originários e o desenvolvimento autossustentável da Amazônia, seguem atuais".
O roteirista Igor Miguel Pereira, responsável pelo documentário Expedição Roosevelt Rondon (2021), aponta outro episódio tenso: o dia em que a expedição foi alvo de flechas. "Rondon, um descendente de indígenas, defendia o diálogo. Já Roosevelt, um autêntico caubói, buscava o confronto", compara. "Outro aspecto interessante é o contraste das visões de mundo. Para Roosevelt, a floresta era um desafio a ser vencido; para Rondon, um meio de sobrevivência. Na Amazônia, Roosevelt descobriu que mosquitos e formigas podem ser bem mais desafiadores do que leões e rinocerontes.
Entre um apuro e outro, Roosevelt ainda encontrou tempo para praticar seu passatempo favorito: a caça. Abateu onças, veados e jacarés. E também para contemplar a natureza. Ficou encantado, por exemplo, com a cachoeira de Utiariti, de 85 metros de altura. "Não há na América do Norte, com exceção do Niágara, outra que se possa comparar em volume e beleza", escreveu no seu diário.
Ao final, 30 quilos mais magro
Em 27 de março de 1914, o ex-presidente americano se feriu numa pedra. Sua perna infeccionou e ele teve que ser operado às pressas, na casa de um seringueiro. Desesperado, chegou a suplicar a Rondon que seguisse viagem e o deixasse para trás. "Em vários aspectos, o verdadeiro herói da expedição foi o médico José Antônio Cajazeiras. Se não fosse ele, Roosevelt teria morrido. Fez duas operações em condições bastante precárias", elogia o jornalista americano Larry Rohter, autor de Rondon: Uma biografia (Objetiva, 2019).
Não bastasse, o ex-presidente americano ainda contraiu malária e sofreu com furúnculos pelo corpo. Nos últimos dias, não conseguia mais sentar e teve que ser conduzido de bruços sobre uma maca. Resultado: chegou a Manaus, a última parada da expedição, 30 quilos mais magro. Para não pegar malária, Rondon tomava, antes de cada refeição, uma dose de quinina. Naquele ano, quando lançou Nas selvas do Brasil (Through the Brazilian wilderness, no original), Roosevelt se referiu à Floresta Amazônica como "natureza infernal". Morreu no dia 6 de janeiro de 1919, de ataque cardíaco. Tinha 60 anos.
Roosevelt dedicou o livro a Rondon: "brilhante" e "intrépido" foram alguns dos adjetivos usados. Comparou os mosquitos a "pragas noturnas", descreveu o tamanduá-bandeira como "gigante comedor de formigas" e denominou as piranhas de "os peixes mais ferozes do universo". "Das muitas imagens que analisei no Museu de História Natural, não vi nenhuma do Roosevelt dentro d'água. Seria medo de piranhas?", indaga o historiador Sérgio Luiz Augusto de Andrade de Almeida, autor do livro Expedição científica Roosevelt-Rondon – Um ex-presidente americano e um coronel do exército brasileiro em uma odisseia pelos sertões do Mato Grosso e Floresta Amazônica (Paco Editorial, 2018).
"De todos os animais da fauna brasileira, nenhum incomodou mais o ex-presidente do que os mosquitos. Em várias imagens, aparece usando um chapéu de caçador com uma rede cobrindo o rosto. Dizia que os insetos eram o verdadeiro perigo da selva". Outro título inspirado na expedição foi O Rio da Dúvida – A sombria viagem de Theodore Roosevelt e Rondon pela Amazônia (Companhia das Letras, 2007), da americana Candice Millard.
Terminada a expedição, o rio da Dúvida foi rebatizado de Roosevelt. É tão caudaloso que, em 2018, Bruno Barreto tentou transformá-lo em locação, mas não conseguiu. O jeito foi rodar O hóspede americano em outros cenários, como a Chapada dos Guimarães (MT). Na minissérie, Aidan Quinn interpreta Roosevelt e Chico Diaz, Rondon. "Ninguém morreu, mas chegamos perto várias vezes", brincou o ator americano, por ocasião das filmagens. Um pequeno afluente também mudou de nome. Virou Kermit, em homenagem ao filho do ex-presidente.
"Nem Rondon, o maior conhecedor de rios da Amazônia, encontrou, antes ou depois, um rio tão difícil de ser explorado", analisa o sociólogo José Augusto Drummond, professor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB) e autor do artigo Roosevelt e Rondon desvendam um rio amazônico. "Bem, se o objetivo de Roosevelt era experimentar nossa natureza selvagem, acho que ele foi plenamente alcançado".
André Bernardo/Caminho Político
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