O último relatório da Oxfam, organização internacional para o combate à fome e à pobreza, com atividade em mais de 100 países, é revelador. Nos últimos cinco anos, o abismo entre os mais ricos e os mais pobres se alargou. Entre 2010 e 2015, somente 62 indivíduos (curiosamente, 53 homens) passaram a possuir riqueza equivalente a 3,6 bilhões de pessoas, a metade da população mundial mais afetada pela pobreza. No período anterior, 388 indivíduos detinham esta posição. Enquanto a riqueza destes poucos 62 aumentou em mais de meio trilhão de dólares, a fatia mais empobrecida da população mundial ficou 38% ainda mais pobre, perdendo mais de um trilhão de dólares.
Se a riqueza é majoritariamente masculina, é possível falar em “feminilização da pobreza”. O próprio Fundo Monetário Internacional reconhece, em estudo publicado no ano passado, que a desigualdade social acentua a desigualdade de gênero no acesso à saúde, educação, participação no mercado de trabalho e representação política. As estatísticas sobre feminicídio no Brasil ilustram este cenário: mais de dois terços das vítimas fatais do machismo são moradoras das periferias, boa parte das quais são mulheres negras. Para as mulheres, a desigualdade é letal.
O machismo que se manifesta na violência psicológica e no feminicídio, nos assédios de rua e estupros, está na estrutura da sociedade de classes. Somos no mundo a maioria entre os trabalhadores de baixa remuneração ou postos informais de trabalho. Estamos concentradas nos empregos mais precários. Em tempos de crise, a aceitabilidade de se pagar salários mais baixos a mulheres no desempenho de uma mesma função que um homem tem sido citada como um fator crucial para se aumentar lucros. Por outro lado, direitos trabalhistas elementares, como a licença maternidade, tornam as jovens mulheres contratações de risco. E diversos empresários brasileiros parecem não ter o menor pudor em declará-lo à imprensa.
Profundamente afetadas pelo desemprego, as alternativas oferecidas pelo Capital às mulheres durante a crise são o retorno ao lar e ao trabalho doméstico exclusivo não remunerado; ou a informalidade. A cada dia de nossas vidas, gastamos com trabalhos reprodutivos domésticos e de cuidados – fundamentais para a manutenção da sociedade, mas invisíveis e sem remuneração – cerca de 2,5 vezes mais tempo que os homens, independente de nossa participação no mercado de trabalho.
Neste quadro, a proposta de nova reforma da previdência que se discute hoje no país, sob a batuta da primeira mulher Presidenta da República, prevendo aumento do tempo de contribuição e idade mínima para acesso ao benefício, contém ainda nuances de misoginia. Equiparar as idades de aposentadoria de homens e mulheres, sob o falho argumento de que as mulheres brasileiras são mais longevas, é retroceder no importante reconhecimento do trabalho doméstico não remunerado das mulheres pelo Estado Brasileiro.
Não é o primeiro ataque deferido especialmente às mulheres pelas canetadas do ajuste fiscal. Nos atos de Dia Internacional de Luta das Mulheres do ano passado, o enfrentamento ao ajuste fiscal também esteve na ordem do dia, pautado pelas então Medidas Provisórias 664 e 665, que entre outras medidas reduziram pela metade o valor da pensão em caso de morte (com maioria de mulheres beneficiárias); e o combate à ampliação da terceirização, projeto que segue em discussão no Senado e continua no centro das lutas sindicais e feministas no Brasil.
Quando na segunda metade do século passado Simone de Beauvoir escreveu a célebre frase “ninguém nasce mulher, torna-se”, desnudou ao mundo que a condição de opressão das mulheres não é um destino biológico, mas uma construção social. A partir do nascimento da criança, ou a partir do momento em que ela se reconhece e se mostra ao mundo como mulher, está sujeita a uma série de expectativas e condicionamentos da sociedade sobre si.
Reconhecer-se mulher como um ser autônomo e completo, e não somente o “segundo sexo” em relação aos homens, é condição fundamental para se manifestar politicamente e reivindicar direitos. No tortuoso caminho das mulheres em busca de autonomia e liberdade, nossa história é de resistência. Citando a escritora nicaraguense Gioconda Belli, em seu poema “8 de março”: quão pouco é um só dia, irmãs. Manter as conquistas, e avançar na destruição deste sistema de opressão-exploração das mulheres, são tarefas cotidianas.
Neste 8 de março, as mulheres brasileiras ocupam as ruas de todo o país para mostrar nossa voz, manifestar nossa existência, e resistir às investidas do capital sobre o trabalho e a vida. Tirem as mãos de nossos corpos, tirem as mãos de nossos direitos.
Carolina Peters é do Diretório Nacional do PSOL, coordenadora do Setorial Nacional de Mulheres e membro do conselho curador da Fundação Lauro Campos.

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