Correspondente Internacional da Folha de S. Paulo em Londres de 1985 a 1992, o jornalista Antonio Carlos Seidl entrevistou personagens de todos os tipos e produziu histórias incríveis que compartilha no recém-lançado "Do Palácio ao Bordel - Crônicas e segredos de um jornalista brasileiro em Londres", da Grua Livros. Uma daquelas obras que a gente começa a ler e não consegue parar até chegar ao fim... já pensando em quando o autor vai lançar a continuação. "A primeira obrigação do correspondente é a cobertura das hard news, que são os acontecimentos de impacto, as notícias quentes do dia, que, pelo seu caráter, vão para as manchetes da primeira página. Mas o lado mais saboroso da atividade são as reportagens especiais e entrevistas exclusivas com protagonistas de vários setores da vida contemporânea. Foi assim, que fui a um bordel entrevistar uma representante da profissão mais antiga do mundo, que era candidata a uma cadeira na “Mãe de todos os parlamentos”, e ao palácio para um diálogo inesperado com o herdeiro do trono britânico", diz o autor. O resultado é um livro que dá gosto ler por múltiplos motivos.
Jornalistas e aspirantes à profissão encontram na narrativa informações para enriquecer sua formação profissional, enquanto o público geral tem acesso a histórias e curiosidades que provavelmente nem poderia imaginar. Tudo embalado em um texto de alta qualidade como todo mundo sonha em produzir um dia.
Representante do olhar brasileiro sobre os principais eventos mundiais no período em que foi correspondente, Seidl compartilha com seu leitor o sabor do fazer jornalístico, um exercício de persistência e dedicação. "Nas minhas crônicas faço uma ponte entre as duas sociedades e também entre o final do século passado e o atual. Espero também que minhas histórias sejam agradáveis para quem tem interesse pelo que se passa no mundo. E, sobretudo, que sejam úteis para quem estudou, estuda ou vai estudar; ensinou, ensina ou vai ensinar jornalismo", avisa.
Em entrevista ao Portal IMPRENSA, Seidl, que fez mestrado na London School of Economics e foi editor-assistente do Serviço Brasileiro da BBC, fala sobre passado e futuro da profissão, mostra porque o brasileiro é o "primo pobre" dos correspondentes internacionais e, para sorte de seus leitores, confessa que a vontade de continuar escrevendo continua alta.
Qual foi o principal desafio para escrever esse livro?
O ato de escrever é para mim um grande prazer. Escrevo por necessidade profissional desde os 17 anos de idade, e desde sempre por necessidade existencial. Tal qual nomes renomados das letras confessaram, também sofro muito no processo de escrever. O desafio é conter a ansiedade, quando é preciso interromper o trabalho, por pouco tempo que seja, para cuidar das coisas da vida. Elizabeth Bowen, uma das maiores romancistas britânicas do século 20, que era a leitura preferida de Agatha Christie, disse certa vez que, para ela, o prazer de escrever superava até mesmo o prazer de fazer amor. Pode ser. Discordo, contudo, da afamada ficcionista em gênero, número e grau.Mas é mais ou menos por aí.
Em meio a tantas histórias, qual foi a cobertura mais desafiadora até agora e por quê?
O repórter enfrenta um novo desafio a cada dia que sai da Redação para cumprir a pauta dele, seja ela qual for. Toda pauta é um grande desafio. Para todas, é preciso fazer o dever de casa, buscar fontes fidedignas e ter certeza da exatidão das informações obtidas. Alberto Dines, um dos nomes mais importantes do jornalismo brasileiro, nos ensinou que o repórter sempre deve partir para uma missão jornalística certo de que a reportagem dele irá para a primeira página. Se, ao contrário, dizia o mestre, o repórter tem certeza de que o secretário de redação não irá publicá-la, ela se encaminhará sozinha para a cesta de papéis. Na atual era da informática, diria que ela se “autodeletaria”.
A bibliografia em português sobre jornalismo internacional é bastante restrita, comparada ao que existe em outros idiomas. Essa foi uma das motivações a escrever esse livro? Qual seu principal objetivo?
O meu principal objetivo foi contar histórias em forma de crônicas ambientadas na minha experiência como correspondente internacional da Folha de S.Paulo em Londres, de 1985 a 1992. Tive o privilégio, a distinção e a responsabilidade de ser o primeiro jornalista a representar em Londres a “nova Folha”, a era moderna do jornal, iniciada com o lançamento do Projeto Folha, em 1984. A primeira obrigação do correspondente é a cobertura das hard news, que são os acontecimentos de impacto, as notícias quentes do dia, que, pelo seu caráter, vão para as manchetes da primeira página. Mas o lado mais saboroso da atividade são as reportagens especiais e entrevistas exclusivas com protagonistas de vários setores da vida contemporânea. Foi assim, que fui a um bordel entrevistar uma representante da profissão mais antiga do mundo, que era candidata a uma cadeira na “Mãe de todos os parlamentos”, e ao palácio para um diálogo inesperado com o herdeiro do trono britânico. Entrevistei, entre outras personagens, o escritor Kazuo Ishiguro, futuro Prêmio Nobel de Literatura; Stephen Hawking, autor do best-seller “Uma breve história do tempo”; sir Isaiah Berlin, filósofo liberal, decano da Universidade de Cambridge; Eric Hobsbawn, historiador marxista; Mirandinha, primeiro jogador brasileiro do futebol inglês; expoentes da Sétima Arte, tais como Susan Seidelman, Mel Gibson, Kenneth Branagh e Giuseppe Tornatore; os roqueiros Rod Stewart e Bill Wyman, dos Rolling Stones; sir Jeremy Morse, presidente do Lloyds Bank; Andreas Whittam Smith, fundador do “The Independent”; e até mesmo representantes da ordem religiosa “Irmãs da Indulgência Perpétua”, de freiras gay. Os anos passados em Londres, onde, além do trabalho para a Folha de S.Paulo, fiz um mestrado na London School of Economics e fui editor-assistente do Serviço Brasileiro da BBC, foram os melhores da minha vida. Quero esquecê-los bem devagarinho. Eles me permitiram conhecer bem a cultura britânica. Nascido e criado no Rio de Janeiro, nas minhas crônicas faço uma ponte entre as duas sociedades e também entre o final do século passado e o atual. Espero também que minhas histórias sejam agradáveis para quem tem interesse pelo que se passa no mundo. E, sobretudo, que sejam úteis para quem estudou, estuda ou vai estudar; ensinou, ensina ou vai ensinar jornalismo.
O título do seu livro transmite uma ideia geral do ofício do correspondente, cobrir de tudo e um pouco mais, como era lidar com isso no dia a dia?
A situação econômico-financeira do país sede da empresa jornalística tem o maior peso na natureza do trabalho do correspondente estrangeiro. Os países ricos mantêm no exterior um estafe de profissionais organizados segundo uma especialidade, o que significa um trabalho mais regular e geralmente mais completo. Desde sempre, no caso brasileiro acontece justamente o oposto, na medida em que ainda prevalecem no país problemas sérios, tais como a situação político-econômica e social instável, enquanto persistem a moeda fraca e os juros elevados na comparação internacional. As dificuldades enfrentadas pelo correspondente brasileiro - o primo pobre dos correspondentes internacionais -, entre elas, o grande número de pedidos de matérias recebidos da sede e sua impossibilidade de atendê-los dentro dos prazos previstos; tornam a atividade ainda mais fascinante. Cada texto publicado significa uma vitória e um incentivo ao trabalho metódico, tendo em vista a melhoria constante da produção e o entrosamento com a secretaria de produção e com todas as chefias da redação.
No processo generalizado de encolhimento das redações, as editorias de internacional foram bastante sacrificadas e torna-se cada vez mais difícil atuar nesse segmento. Como você avalia essa transformação no mercado e qual sua perspectiva para o futuro?
A melhor resposta para essa pergunta está no Posfácio do meu livro, escrito e assinado pelo jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva, que teve passagem marcante pela Folha de S.Paulo, onde foi secretário e diretor-adjunto de redação e correspondente em Washington. Lá ele diz que a supostamente charmosa ocupação de correspondente internacional está ameaçada. E que isso constitui um risco para a sociedade, porque o correspondente faz a “tradução” do que ocorre em outros países para a audiência do seu, algo indispensável para a correta compreensão dos problemas do mundo. Isso, afirma, custa caro para as empresas jornalísticas. Na crise estrutural do modelo de negócios da atividade, um dos primeiros alvos de administradores que não são sensíveis é cortar a função. Acham eles que ela se tornou desnecessária, já que a tecnologia agora permite que o interessado em assuntos do exterior tenha acesso instantâneo e contínuo aos melhores veículos de outras nações. Lins da Silva indaga: Para que pagar a alguém e arcar com as despesas dessa pessoa em lugares de alto custo de vida como Londres ou Washington se o consumidor brasileiro que queira pode ler o “New York Times” ou o “Guardian” ou assistir a CNN ou a BBC junto com o correspondente que depois vai relatar o que esses diários e emissoras já informaram? Ele diz que esse raciocínio parece óbvio, mas é completamente equivocado. A mídia de cada nação dirige-se ao público dela. Mais ainda: dirige-se ao público de cada veículo, que tem perfil definido, que se diferencia do geral nacional. O correspondente tem a missão de descobrir os enfoques que farão de um tema algo interessante para quem é seu cliente específico. E isso não é simples nem fácil: exige que o jornalista conheça bem a cultura das duas sociedades e saiba fazer a ponte entre elas.
Muitos jovens sonham em ser correspondente internacional. Em linhas gerais, quais conselhos você lhes daria para conseguirem uma boa preparação e se tornarem bons profissionais nesse setor?
A preparação para ser correspondente internacional começa no primeiro dia de trabalho de um foca (que hoje tem o nome chique de trainee) na redação. E é a mesma para todos os repórteres, ou seja, estar sempre preparado para ser um especialista, seja qual for a pauta: política, literatura, ciência, economia, comportamento. Fazer o dever de casa. Ter o máximo de cuidado na escolha de suas fontes de informação; cabe ao profissional hierarquizar as fontes de informação e, apoiado em critérios de bom senso, determinar o grau de confiabilidade de cada uma e que uso do que lhe passam. Estudar todos os lados de uma disputa. Ter faro, intuição, olhos de escorpião e capacidade de improvisação. Evitar ter amigos no poder - poder é fonte, e só. Desgostar sempre do texto escrito de primeira, porque escrever é reescrever. Não passar um dia, sequer, sem ler um bom autor. Desconfiar das verdades absolutas nas questões polêmicas. Obter um mínimo de duas versões para cada caso. Ter a certeza de que as suas informações preencham os três critérios básicos do jornalismo: exatidão, exatidão e exatidão. Isso vale para todos os que querem ser bons repórteres; qualidades às quais, no caso do correspondente internacional, é preciso acrescentar o conhecimento da história e da cultura do país onde vai atuar e o domínio do idioma.
Quais seus próximos projetos?
Escrever. Encontro-me na mesma situação que o Conselheiro Aires, o alter ego do “Bruxo do Cosme Velho”, que disse em seu “Memorial” que “nada há pior que gente vadia, - ou aposentada, que é a mesma coisa; o tempo cresce e sobra, e se a pessoa pega a escrever, não há papel que baste”. Sábias palavras. No que me dizem respeito, a única diferença é que já não se gasta tanto papel para se pegar a escrever. Diria que não há tela de computador, ou nova guia de Windows, que chegue. Vou contar mais histórias e segredos de um jornalista brasileiro em Londres. Ou outras histórias. Para tentar chegar perto da sensação descrita pelo mestre Armando Nogueira: “Melhor que escrever é ter escrito; vou continuar a escrever, para ter a alegria de depois poder dizer: Escrevi, confesso que escrevi!”.
Marta Teixeira
Foto:Júlia Braga
Imprensa/Caminho Político
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