
Quando ele disse “Já!” instantaneamente todas as crianças se deram as mãos e saíram correndo em direção à árvore com o cesto. Chegando lá, começaram a distribuir os doces entre si e a comerem felizes. O antropólogo foi ao encontro delas e perguntou porque elas tinham ido todas juntas se uma só poderia ficar com tudo que havia no cesto e, assim, ganhar muito mais doces. Elas simplesmente responderam: –Ubuntu, tio. Como uma de nós poderia ficar feliz se todas as outras estivessem tristes?
Ele ficou pasmo. Meses e meses trabalhando nisso, estudando a tribo e ainda não havia compreendido, de verdade, a essência daquele povo. Ou jamais teria proposto uma competição, certo? Ubuntu significa: “Eu sou porque nós somos” ou, em outras palavras “Eu só existo porque nós existimos”. “Como uma de nós poderia ficar feliz se todas as outras estivessem tristes?”
A resposta singela da criança, é profunda e vital pois está carregada de valores como respeito, cortesia, solidariedade, compaixão, generosidade, confiança – enfim, tudo aquilo que nos torna humanos e garante uma convivência harmoniosa em sociedade. Ubuntu exprime a consciência da relação entre o indivíduo e a comunidade. É, ao mesmo tempo, um conceito moral, uma filosofia e um modo de viver que se opõe ao narcisismo e ao individualismo tão comuns em nossa sociedade ocidental capitalista.
Enquanto a ideia europeia sobre a natureza humana baseia-se na ideia de liberdade , de que os indivíduos têm o poder da livre escolha, a ideia africana do ubuntu repousa sobre a ideia da comunidade, de que pessoas dependem de outras pessoas para serem pessoas. Segundo o espírito de ubuntu, as pessoas não devem levar vantagem pessoal em detrimento do bem-estar do grupo. Para que uma pessoa seja feliz será preciso que todas do grupo se sintam felizes. Estamos conectados uns com os outros e essa relação estende-se aos ancestrais e aos que ainda nascerão. Ubuntu é, assim, um sistema de crenças, uma ética coletiva e uma filosofia humanista espiritual pautada pelo altruísmo, fraternidade e colaboração entre os seres humanos. Do ponto de vista político, o conceito de ubuntu é usado para enfatizar a necessidade da união e do consenso nas tomadas de decisão.
É a síntese de um conhecido provérbio xhosa da África do Sul que diz o seguinte: “Umuntu Ngumuntu Ngabantu“, que significa “Uma pessoa é uma pessoa por causa das outras pessoas“.

A pessoa só é humana por meio de sua pertença a um coletivo humano; a humanidade de uma pessoa é definida por meio de sua humanidade para com os outros: (…) o valor de sua humanidade está diretamente relacionado à forma como ela apoia ativamente a humanidade e a dignidade dos outros; a humanidade de uma pessoa é definida por seu compromisso ético com sua irmã e seu irmão. Perguntada sobre que aspectos o ubuntu poderia contribuir para a ética ocidental, Dalene Swanson respondeu: Vivemos em uma era de globalização econômica neoliberal profundamente perturbadora.
Nossas pautas de desenvolvimento foram sequestradas por esse modelo econômico que se apresenta como a forma “certa” ou única de promover o desenvolvimento. Moldado por relações capitalistas de produção, esse modelo é subscrito pelo materialismo, pelo individualismo e pela competição e normaliza uma elite rica sobre os pobres privados de direitos (…). Para maximizar os lucros, pensa-se que algo tem de ser explorado. (…) Em termos ecológicos, também inclui a devastação do meio ambiente em sua esteira. (…)
Visto que o princípio central do ubuntu é o respeito mútuo, ele está em consonância com a epistemologia africana de modo mais geral, que é circular em sua compreensão e, consequentemente, está mais em harmonia ecológica com a Terra do que a epistemologia do racionalismo ocidental, que é linear, exploradora e insustentável. (…)
O ubuntu, como contribuição para uma filosofia nativa, é uma expressão viva de uma alternativa ecopolítica. Em um mundo crescentemente movido a vigilância, o futuro dos direitos humanos (e ecológicos), da dignidade humana e da sobrevivência de nosso planeta em termos amplos dependem de noções filosóficas e ideológicas nativas como o ubuntu.
Joelza Ester Domingues Mestre em História Social pela PUC-SP. Lecionou nos colégios Marista Arquidiocesano e Santa Cruz, ambos em São Paulo, capital, e também nos cursinhos pré-vestibulares Objetivo e Intergraus. Autora das coleções didáticas “História em Documento” e “Projeto Athos-História”, ambas pela editora FTD.
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