Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso

Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso
Av. André Maggi nº 6, Centro Político Administrativo

Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso

Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso
X SIMPÓSIO SOBRE DISLEXIA DE MATO GROSSO “TRANSTORNOS DO NEURODESENVOLVIMENTO”

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

"O fascismo e seus artistas"

Joseph Goebbels (centro) na exposição Arte degenerada em Berlim em 1938. À esquerda, um quadro de Emil NoldeO caso Roberto Alvim faz lembrar o de Emil Nolde, pintor alemão simpatizante do nazismo, mas execrado pelo regime.Entre abril e setembro de 2019, o Hamburger Bahnhof de Berlim abrigou uma retrospectiva do pintor Emil Nolde, com o título "Uma lenda alemã: o artista durante o regime nazista". Nunca vi o museu tão cheio e barulhento, seus corredores apinhados com centenas de alemães de terceira idade comentando o que viam, entre quadros, cartas e notas biográficas. Aquela era a primeira grande exposição na capital do país que mostrava Nolde, tido por décadas como símbolo maior de artista-vítima do regime, como o nazista antissemita que realmente foi. Não terá sido por coincidência que, no mês da abertura da exposição, a chanceler federal Angela Merkel tenha decidido retirar de seu gabinete dois quadros do pintor.
De uma forma ou de outra, não é o primeiro governo que se desfaz de obras dele. Nenhum outro artista teve tantas obras confiscadas e destruídas pelo nazismo. Nolde foi também o grande destaque da exposição de "Arte degenerada", promovida por Goebbels em 1937 para expôr e ridicularizar o que estaria fora do ideal artístico neoclássico defendido por Hitler. Talvez a principal diferença entre ele e outros artistas contemplados pela mostra tenha sido sua gigantesca frustração: Nolde tentava ser um artista do regime. Lutou arduamente para ser reconhecido pelos nazistas, como atesta sua farta correspondência. Depois da queda do Terceiro Reich, o principal nome do Expressionismo Alemão cultivou a imagem de perseguido político – e para isso ajudou muito o livro Aula de alemão, de Siegfried Lenz, que romanceia sua história. Apenas recentemente, a partir de 2013, a fundação com seu nome começou a revelar seu apoio a Hitler e seu ódio pelos judeus, abrindo para pesquisa mais de 25 mil documentos em seu arquivo.
Nada que faça seus quadros menos espetaculares. Sua arte "degenerada" e multicolorida abandona os ideais acadêmicos de beleza da época e apresenta figuras e corpos brutalizados quase perdidos numa espiral abstrata, sinistra, intensamente expressiva. Aqui há um divórcio evidente: ainda que Nolde tenha tentado convencer o regime de que aquela seria a arte nacional, ele não deixou o ideal estético nazista invadir sua pintura. De certa forma, pintava a contrapelo de suas convicções políticas.
Lembrei de Nolde (e, claro, de Goebbels) quando o ex-Secretário da Cultura do governo Bolsonaro Roberto Alvim mimetizou em discurso e estética o Ministro de Propaganda nazista. Em entrevistas antes da (mal) calculada performance que causou sua demissão, Alvim costumava dizer que sua profícua carreira como diretor de teatro tinha acabado. De fato, o campo bolsonarista evangélico para o qual se converteu jamais pagaria um centavo para ver nenhuma de suas obscuras peças, que elevavam ao paroxismo os cacoetes do teatro experimental – um território "de esquerdas" por excelência.
Pesando mérito artístico, não há como incluir Nolde e Alvim numa mesma frase. No entanto, talvez os dois façam parte de uma curiosa linhagem de artistas trágicos cujas intenções estéticas divorciam-se dos regimes fascistas aos quais aderem.
A relação entre o meio artístico e um regime totalitário é bem explorada em texto já clássico da crítica Flora Süssekind, Brasil: os anos de autoritarismo. Literatura e Vida Literária. Recentemente afastada da Casa Rui Barbosa pelo governo, Süssekind delimita três fases distintas da relação entre a classe artística brasileira e a ditadura militar pós-64.
Se no início há uma convivência relativamente pacífica, quando o discurso dos artistas começa a influenciar estudantes e trabalhadores vemos um endurecimento do regime, com censura e perseguição pós AI-5. Uma terceira fase, num momento de distensão, é marcada pela tentativa de cooptar, através de fomento, o silêncio de certos artistas – ou pelo menos o silêncio sobre certos temas.
J.P. CuencaO que vemos e veremos no Brasil no primeiro mandato deste presidente abertamente fascista é uma mistura destes três tempos: permissividade (até que as vozes críticas ofereçam real ameaça), censura (principalmente econômica) e, finalmente, cooptação. Desta, o malfadado edital de Alvim foi apenas a primeira tentativa concreta, fracassada apenas por expor a lógica interna do governo na estética de um discurso. Aguardemos a próxima tentativa.
Escritor e cineasta, J.P. Cuenca é autor de cinco livros traduzidos para oito idiomas. Seu último romance, Descobri que estava morto, foi vencedor do Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional e deu origem ao longa-metragem A morte de J.P. Cuenca, exibido em mais de 15 festivais internacionais. Ele hoje vive entre São Paulo e Berlim. Siga-o no Twitter, Facebook e Instagram como @jpcuenca

Nenhum comentário:

Postar um comentário