Corresponsável
pela ascensão de Viktor Orbán, o filantropo bilionário passou a ser o
"vilão perfeito" a ser construído. Cruzada de difamação contra Soros
ultrapassou fronteiras da Hungria e inspira violência terrorista. Existem
poucos países em que uma teoria da conspiração é razão de Estado.
A Hungria é
um deles. Há cerca de cinco anos o primeiro-ministro Viktor Orbán elegeu o
bilionário americano George Soros como
inimigo de Estado número um: o filantropo de origem húngara, de 89 anos, seria
o mentor de uma conspiração em grande escala, com o suposto fim de derrubar o
premiê húngaro, dissolver os Estados nacionais da Europa e substituir suas
populações por migrantes. Entre
os supostos "mercenários" e "agentes" de Soros, segundo o
governo húngaro, estariam organizações não governamentais, jornalistas e
cientistas, mas também a União Europeia (UE) e a Organização das Nações Unidas
(ONU). No
momento a crise do coronavírus alimenta essa campanha de perseguição. Afirma-se
que Soros estaria por trás da crítica internacional às medidas autoritárias de
Budapeste no contexto da pandemia. Ele seria o "grão-mestre" dos
"burocratas de Bruxelas", declarou Orbán em pessoa, numa edição
recente de suas entrevistas semanais à estatal Kossuth Rádió.
Chega
a ser irônico Orbán ter declarado guerra justamente ao homem que impulsionou
decisivamente sua ascensão. Filho de judeus e sobrevivente do Holocausto na
Hungria, George Soros primeiro se exilou em Londres após a tomada de poder
pelos comunistas. Em 1956, emigrou para os Estados Unidos, onde fez fortuna com
especulações financeiras.
Marcado
tanto pelo horror nacionalista e comunista como pela filosofia de Karl Popper
da "sociedade aberta", Soros fundou em 1984 a fundação Open Society.
Desde então, ela tem apoiado por todo o mundo a democracia e os direitos de
liberdade e humanos, até hoje com mais de 15 bilhões de dólares, segundo seus
próprios dados.
Também
o jovem Viktor Orbán e seu partido Fidesz (Liga dos Jovens Democratas) se
beneficiaram do engajamento filantrópico do bilionário, que patrocinou com
somas generosas a legenda originalmente radical-liberal. Soros lhes
possibilitou publicar o próprio jornal, financiou cursos de idiomas e
escritórios do partido. Mais tarde, numerosos membros do Fidesz receberam dele
bolsas para estudar no Ocidente; Orbán foi para Oxford.
Quando,
após o fim do regime comunista na Hungria, em 1989, os nacionalistas passaram a
difamar Soros por seu apoio às forças liberais, o Fidesz defendeu o engajamento
do filantropo contra tais "ataques infames".
Orbán
e companhia saudaram entusiásticos a fundação da Universidade Centro-Europeia,
cofinanciada por Soros, a qual em breve se tornou a mais prestigiosa instituição
de ensino superior do país. Cerca de 30 anos mais tarde, o partido de Orbán,
agora nacional-conservador e populista de direita, expulsaria justamente essa
universidade da Hungria.
De benfeitor a vilão
Depois
de uma fragorosa derrota nas eleições de 2002, Orbán foi para a oposição.
Somente oito anos mais tarde foi eleito primeiro-ministro pela segunda vez, com
sucesso esmagador e um programa totalmente diverso. Contando com uma maioria de
dois terços no parlamento, o ex-liberal passou a transformar a Hungria num
"Estado não liberal".
Ele
mudou a Constituição, cerceou a liberdade de imprensa e ocupou o Tribunal
Constitucional com juízes leais a si. Para assegurar seu poder no longo prazo,
porém, Orbán precisava de um inimigo simbólico. No país, ninguém mais era páreo
sério para ele: a oposição estava fragmentada, e a maior parte da mídia,
alinhada com o Fidesz. Então onde encontrar um bode expiatório?
A inspiração decisiva veio do
exterior: em 2008, Orbán conheceu o influente consultor político americano
Arthur Finkelstein, que desde a década de 1970 assessorara com sucesso os
presidentes republicanos, de Richard Nixon a George W. Bush. Em meados dos anos
1990, ele fizera Benjamin Netanyahu premiê israelense. Inúmeras campanhas
eleitorais haviam ensinado a Finkelstein como era importante dar um rosto ao
inimigo. Há muito, o empenho de Soros pelo liberalismo e democracia era uma
pedra no sapato da direita internacional.
Os nacionalistas dos Bálcãs também
o detestavam por apoiar a oposição democrática; o presidente russo, Vladimir
Putin, o abominava pelo engajamento em prol da Ucrânia e Geórgia. E também para
os republicanos dos EUA, Soros se tornara uma figura odiada por suas doações ao
Partido Democrata, seu empenho pela proteção climática e sua crítica ferrenha à
guerra do Iraque.
Soros era o inimigo perfeito para
Orbán, pensaram Finkelstein e seu parceiro George Birnbaum: era de origem
húngara, mas já vivia há décadas nos EUA, era rico e politicamente engajado em
âmbito global. Em meados de 2013, começou a campanha contra o filantropo, que
alcançaria o auge dois anos mais tarde, no contexto da crise migratória.
De "ideia genial" a
motivação terrorista
Seguiu-se a possivelmente maior e
mais custosa campanha de outdoors da história húngara: "Não deixemos Soros
rir por último", incitava o governo seus cidadãos. Pouco mais tarde, era
aprovada a "lei Stop Soros", voltada contra ONGs engajadas pelos
direitos de refugiados e migrantes. Por fim, foi expulsa de Budapeste a
Universidade Centro-Europeia, cofundada por Soros.
Progressivamente, Orbán adicionou
tons antissemitas a sua cruzada contra Soros. "Estamos lutando contra um
inimigo que é diferente de nós: não aberto, mas escondido; não direto, mas
ardiloso; não honrado, mas ignóbil; não nacional, mas internacional; que não
acredita em trabalho, mas sim especula com dinheiro; que não tem sua própria
pátria, mas age como se fosse dono de todo o mundo", disse num discurso em
2018.
De lá para cá, a imagem hostil de
George Soros ganhou vida própria: seja o presidente americano, Donald Trump,
seu colega turco Recep Tayyip Erdogan, Netanyahu ou Putin, todos adotaram de
Orbán o rótulo do "marionetista todo-poderoso". Nas redes sociais, o
filantropo bilionário é apresentado como a vilania em pessoa, partidos
populistas de direita da Europa à Austrália incitam contra ele.
Com intensidade crescente, tais
campanhas de agitação redundam em violência. Funcionários das fundações Open
Society são repetidamente agredidos. Em 2018, um apoiador fanático de Trump
enviou uma bomba caseira ao endereço particular de Soros. Da mesma forma,
terroristas de extrema direita cada vez mais justificam seus atos como
tentativas de impedir uma "troca da população" supostamente planejada
pelas elites globais.
Essa teoria de conspiração, em que
Soros igualmente desempenha um papel central, fazia parte de
"manifesto" racista do terrorista de Christchurch, Nova Zelândia, que
custou as vidas de dezenas de muçulmanos. O assassino de Pittsburgh matou
judeus por pretextos semelhantes. Também o autor do atentado em Halle,
Alemanha, acreditava numa suposta conspiração judaica e afirmou que Soros
queria transformar o país num Estado multicultural.
Será que
Arthur Finkelstein e George Birnbaum – ambos também judeus – contavam com a
dimensão letal de sua invenção supostamente "genial"? Não se pode
mais perguntar a Finkelstein, pois ele morreu em 2017. E Birnbaum se recusa a
falar a respeito, tendo recusado o pedido de entrevista da DW.
Felix Schlagwein (as)Caminho
Político
Edicão:Régis Oliveira
Foto:F.Coffrini
Nenhum comentário:
Postar um comentário