
"Talvez a razão pela qual nunca aprendamos com a história seja nossa incapacidade de imaginar a realidade da guerra e suas consequências", escreveu o poeta americano Charles Simic. "E isso por causa do medo de que, se o fizéssemos, deixaríamos de acreditar em Deus e no nosso semelhante."
75 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, não haverá grande celebração deste evento em nenhuma capital europeia por causa da covid-19. Mas não é apenas o coronavírus que aflige a Europa, é também o vírus do revisionismo histórico. O que estamos testemunhando na Rússia e em alguns países do Leste Europeu é um armamento da memória da guerra. É considerado crime rejeitar a visão do governo.
Na guerra, a verdade é sempre a primeira vítima. No caso de guerras sobre a memória histórica, a primeira vítima é a complexidade. Na guerra de propaganda da Segunda Guerra Mundial, nem a Rússia nem alguns dos governos do Leste Europeu fizeram uma boa figura.
Na visão oficial do Kremlin, qualquer um que argumente contra a ocupação soviética da Europa Oriental após 1945 é um fascista. E qualquer crítica às políticas de Stalin é vista como uma tentativa deliberada de diminuir o papel decisivo do Exército Vermelho na vitória sobre Adolf Hitler. Em vários Estados do leste da Europa, a reação a isso é tomar a visão exatamente oposta da história: todos os que lutaram contra os soviéticos, até mesmo os aliados dos nazistas, são enaltecidos como heróis.
Mas a História é mais complexa. Como o diretor da Fundação Buchenwald, Volkhard Knigge, disse à filósofa americana Susan Neiman, autora do livro Aprendendo com os Alemães, para que uma narrativa em preto e branco fosse verdadeira "seria preciso ter um campo de concentração sem comunistas e um campo soviético sem nazistas". Mas Buchenwald, que os nazistas construíram como um campo de concentração no Terceiro Reich e que se tornou um campo soviético depois da guerra, é o melhor exemplo de como campos politicamente corretos não são nada além de ficção.
Mas o reconhecimento dessa complexidade não significa que ambos os lados da guerra estejam igualmente errados sobre a memória histórica. O Kremlin pode, com razão, insistir para que as vítimas do povo soviético sejam reconhecidas. Mas a entonação neste caso deve ser em "soviético, ao contrário de "russo". Pois milhões de ucranianos, georgianos e pessoas da Ásia Central morreram lutando contra Hitler. Em Belarus, um em cada três habitantes não sobreviveu à guerra.
As guerras costumam ser travadas por causa de territórios. Guerras de memória são travadas por causa do significado de palavras. E as atuais guerras de memória russo-ucraniana, russo-polonesa ou russo-tcheca são sobre o significado da palavra "libertação".
Em 1985, o então presidente alemão Richard von Weizsäcker fez história ao declarar o dia 8 de maio como o dia da libertação da Alemanha. Ele disse a seus compatriotas ser verdade que os alemães também haviam sofrido muito durante a guerra e que foram cometidas injustiças com eles após a guerra. Mas que os alemães não teriam o direito de se considerar vítimas porque foram responsáveis pelo imensurável sofrimento de outros e pelo Holocausto. Além disso, os alemães deveriam ver o fim da guerra como "libertação". A Alemanha pode ter perdido a guerra, mas, como resultado, ganhou sua liberdade. E o que conta não é a vitória, mas a liberdade.
É esta lição dos alemães que até hoje não foi compreendida pelo Kremlin. Pois é exatamente isso que distingue a Europa Central e Oriental da Europa Ocidental quando se trata do fim da Segunda Guerra Mundial: os europeus-orientais não puderam declarar o dia 8 de maio de 1945 como o dia da sua libertação. Embora a chegada do Exército Vermelho tenha sido uma vitória sobre a Alemanha nazista, ele não libertou esses países.
O presidente Vladimir Putin não quer aceitar que o fato de milhões de soviéticos terem morrido ao serem expulsos pelos nazistas da Europa Oriental não dá a Moscou o direito de decidir quando os países do Leste Europeu devem celebrar sua libertação. O sacrifício dos soldados soviéticos exige respeito, e qualquer tentativa de diminuir o papel da União Soviética na derrota de Hitler equivale a um revisionismo histórico. Mas os monumentos aos marechais e tanques soviéticos não podem ser chamados de monumentos aos libertadores porque as sociedades da Europa Oriental não os consideram como tal.
Não foram os Aliados, mas o presidente alemão que, 40 anos após o fim da guerra, declarou o dia 8 de maio como o dia da libertação para os alemães. E são os próprios europeus-orientais que decidem qual dia consideram como o de sua libertação.
O cientista político búlgaro Ivan Krastev é chefe do Centro de Estratégias Liberais em Sófia e membro do Instituto de Ciências Humanas de Viena. O especialista recebeu neste ano o Prêmio Jean Améry da editora Klett-Cotta e da Allianz Kulturstiftug.
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