No centenário de Jorge Amado, o Congresso realizou uma sessão
solene e o Senado abriga em sua biblioteca uma exposição com as
primeiras edições de seus livros, que começaram a ser publicados ainda
nos anos 1930, e uma cronologia ilustrada do romancista. Jorge Amado já
vendeu mais de 20 milhões de livros e é recordista em textos adaptados
para televisão e cinema. Para José Sarney, é “um dos maiores escritores
da humanidade”
| Jorge Amado usava apenas um dedo de cada mão para bater à máquina: romances que há 80 anos arrebatam brasileiros e estrangeiros. |
Ricardo Westin
No imaginário de brasileiros e estrangeiros, a Bahia é uma terra
fascinante — impregnada de calor e vida, repleta de cores e sabores,
habitada por uma gente alegre e festiva. Quem forjou essa imagem, usando
apenas um dedo de cada mão para datilografar suas histórias, foi Jorge
Amado (1912–2001). Se estivesse vivo, o escritor baiano teria completado
cem anos na sexta-feira passada.
O Brasil está em meio às comemorações do centenário. Seus romances
ganharam novas edições. Em horário nobre, o país vê uma nova adaptação
televisiva de Gabriela, Cravo e Canela.
Na semana passada, o Congresso Nacional realizou uma sessão solene em
que senadores e deputados federais homenagearam o romancista.
No Senado, a biblioteca abriga a exposição Centenário de Jorge Amado.
Nela, o público conhece as primeiras edições de seus livros e algumas
das versões publicadas fora do Brasil. Uma cronologia ilustrada com
fotos de época leva a uma viagem pelos principais momentos da vida do
romancista. A exposição termina na sexta-feira.
Apenas no Brasil, Jorge Amado vendeu mais de 20 milhões de livros.
Provou que best-sellers também podem ter valor literário. Sua obra
chegou a mais 55 países, traduzida para idiomas que vão do russo ao
catalão, do árabe ao guarani. Gabriela, Clove and Cinnamon, a versão em
inglês, chegou a figurar na lista dos mais vendidos do New York Times.
Ninguém mais que Jorge Amado mereceu, no Brasil, o Prêmio Nobel de
Literatura. Que ele nunca tenha ganhado, considero não só uma das
maiores injustiças com a literatura brasileira, mas também com o próprio
Prêmio Nobel, por não ter entre aqueles que premiou a figura de Jorge
Amado, um dos maiores escritores da Humanidade — afirmou o presidente do
Senado, José Sarney, na homenagem do Congresso.
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| Graças aos romances de Jorge Amado, a Bahia correu o mundo: acima, versões publicadas em russo, grego, esperanto e catalão |
Várias Bahias
Na disputa pelo título de escritor brasileiro mais lido no mundo, Jorge Amado fica atrás apenas de Paulo Coelho.
No quesito adaptação para cinema e televisão, entretanto, nenhum
romancista brasileiro conseguiu bater Jorge Amado. A lista de obras
adaptadas é extensa. Basta citar Tieta do Agreste, Dona Flor e seus Dois
Maridos e, de novo, Gabriela, Cravo e Canela, que foram transformadas
tanto em telenovelas quanto em filmes. A mulata Gabriela e o turco
Nacib, na versão cinematográfica, 30 anos atrás, foram vividos por Sonia
Braga e Marcello Mastroianni.
Em seus romances, Jorge Amado descortinou várias Bahias. Uma
diferente da outra, todas marcantes. A Bahia rural ganhou vida com
trabalhadores das fazendas de cacau, coronéis, jagunços e moradores de
vilarejos provincianos. A Bahia costeira apareceu com capitães,
pescadores e seus saveiros. A Bahia urbana surgiu em meio a pais de
santo, boêmios, prostitutas, quituteiras e meninos de rua. Ele gostava
de se referir a Salvador como “a cidade da Bahia”.
Em seu discurso na sessão de homenagem, a senadora Lídice da Mata
(PSB-BA) afirmou que, graças a Jorge Amado, os próprios baianos passaram
a ter uma nova imagem de si mesmos. Nesse ponto, ela colocou o escritor
no mesmo patamar do músico Dorival Caymmi (1914–2008):
Jorge e Caymmi inventaram esta Bahia: terra da felicidade, terra da
negritude. Isso contaminou a Bahia de tal forma que nós passamos a ter
orgulho da negritude baiana.
Jorge Amado teve uma produção literária extraordinariamente intensa.
Entre as décadas de 1930 e 1990, publicou três dezenas de obras. O
senador Walter Pinheiro (PT-BA) acredita que seus livros, inclusive os
mais antigos, jamais deixaram de ser atuais.
A memória de Amado esteve sempre relacionada à valorização social e
cultural do Brasil. Ele se envolvia nos debates com conceitos como
democracia racial e povo. Tudo isso é refletido na tamanha aceitação de
sua obra por diferentes públicos.
Nos livros didáticos de literatura brasileira, ele é enquadrado no modernismo — mais precisamente, no modernismo regionalista.
Do grupo, fazem parte a cearense Rachel de Queiroz, o paraibano José
Lins do Rego, o alagoano Graciliano Ramos e o gaúcho Érico Veríssimo,
que assumiram sem pudor os sotaques locais.
Jorge Amado é o que se pode chamar de romancista bairrista e, ao
mesmo tempo, universal. Ele mostrou que é possível dar asas a
personagens do seu dia a dia e igualmente transformá-los em personagens
do mundo — disse a senadora Ana Amélia (PP-RS).
Em 1961, a Academia Brasileira de Letras, entidade encarregada de
cultivar o português do Brasil e a literatura nacional, finalmente
reconheceu o talento literário de Jorge Amado. Ele foi eleito para a
cadeira 23 — que tem José de Alencar como patrono e Machado de Assis
como primeiro ocupante. Muitos reconhecimentos viriam depois, de prêmios
pelo mundo a enredos de escolas de samba.
Tocaia
A vida de Jorge Amado, tão intensa, poderia ser confundida com uma bela obra de ficção.
Ele nasce numa fazenda de cacau em Itabuna, sul da Bahia. Com poucos
meses de vida, é empapado pelo sangue de seu pai, alvo de uma tocaia nas
próprias terras. O pai sobrevive. Ainda criança, é alfabetizado pela
mãe.
Em Salvador, adolescente com extraordinária facilidade para escrever, trabalha em jornais como repórter policial.
Lança seu primeiro romance. Influenciado por Rachel de Queiroz,
apaixona-se pelo socialismo e seus ideais de união e justiça — suas
convicções ideológicas lhe renderiam muita perseguição. No Rio de
Janeiro, forma-se em Direito, mas não chega a trabalhar com as leis.
Suas obras começam a ser editadas fora do Brasil.
Casa-se pela primeira vez. É preso pela ditadura de Vargas e seus livros são queimados em praça pública.
Exila-se no exterior. Separa-se. Conhece Zélia Gattai e passam a
viver juntos. Pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), elege-se deputado
federal na Assembleia Constituinte. É dele o histórico projeto que
instituiu a liberdade religiosa no Brasil.
Desde jovem, foi-lhe dado testemunhar a violência desmedida com que
o Estado e a Igreja tentavam aniquilar os valores culturais
provenientes da África. Havia discriminação religiosa. Pais e mães de
santo eram presos, espancados e humilhados, e seus lugares sagrados eram
invadidos e depredados — disse o deputado federal Roberto Freire
(PPS-SP), que já fez parte do PCB.
Pouco depois, o “partidão” é posto na clandestinidade e Jorge Amado perde o assento na Câmara dos
Deputados. Mais uma vez, agora com Zélia, parte para o exílio. Percorre todo o leste europeu.
Desilusão
Quando se inteira das atrocidades cometidas pelo ditador Josef
Stalin, um de seus heróis, contra os adversários do comunismo soviético,
Jorge Amado vê o chão desabar sob seus pés. Acorda, desiludido, de seu
sonho quixotesco e abandona a militância política.
Mais tarde, por uma pequena fortuna, vende para Hollywood os direitos
de Gabriela, Cravo e Canela. Com o dinheiro, compra um terreno no
bairro do Rio Vermelho, em Salvador, para construir a casa onde moraria
até o fim da vida.
As décadas rendem-lhe amigos do quilate de Pablo Neruda, Dorival
Caymmi, Diego Rivera, Pablo Picasso, Glauber Rocha, Simone de Beauvoir e
Jean-Paul Sartre.
A vida de Jorge Amado chegou ao fim em 6 de agosto de 2001, a quatro
dias de completar 89 anos. Suas cinzas foram enterradas ao lado de uma
mangueira no jardim da casa do Rio Vermelho.
Ele deixou um romance apenas iniciado. Na homenagem do Congresso, o
filho do escritor, João Jorge Amado, subiu à tribuna para resumir essa
história inacabada.
O escritor imaginava um coronel casado com uma mulher que enlouquece.
Ele acaba se apaixonando por uma moça e tenta se casar com ela, mas o
padre se recusa a celebrar a união. O coronel fica sabendo que o rei da
Inglaterra, para se casar novamente, mudou a religião do país.
Assim,
ele importa um pastor e declara a sua cidade protestante. A população,
que não ousa desafiar o coronel, converte-se. Concluiu João Jorge:
Conto tudo isso aos senhores para mostrar como é grande a perda
dele, que nos priva de ler essa história que não foi concluída e nunca
será. É uma lástima.
Jornal do Senado
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